Desde 1964 as "direitas" não estavam tão mobilizadas, diz historiadora
A historiadora Aline Presot, mestra em história pela UFF (Universidade Federal Fluminense), dedicou parte de sua vida acadêmica a estudar as marchas e manifestações populares contra o governo do ex-presidente João Goulart e a favor do golpe militar de 1964. Seu artigo "Celebrando a ‘Revolução’: As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964" analisa, em detalhes, o ambiente político às vésperas e logo após o golpe de 1964.
As chamadas "Marchas da Família" reuniram centenas de milhares de pessoas nas ruas das principais cidades brasileiras antes e, depois do golpe de 1964, foram vistas como uma espécie de "salvo-conduto" que referendou a deposição de Goulart. Também servem de inspiração para alguns dos movimentos sociais que protestam atualmente contra o governo da presidente Dilma Rousseff (PT).
Em entrevista ao UOL, a historiadora afirma que é preciso "cuidado" ao comparar os dois momentos históricos, que "desde as Marchas da Família de 1964, as direitas não realizavam uma mobilização tão expressiva", mas que não acredita em "golpismos" apesar dos pedidos de "volta" ao regime militar. "Nossas instituições já se encontram suficientemente consolidadas para que não haja espaço para o golpismo", afirma.
UOL - Que paralelos podem ser feitos entre as marchas de 1964 e as manifestações de 2015?
Aline Pressot - Creio que devemos ser bastante cuidadosos na tentativa de estabelecer comparações entre os movimentos. Há alguma equivalência no repertório simbólico evocado, como a crítica à corrupção, o apoio de alguns setores do empresariado e da mídia ao movimento; referências, ainda que difusas, ao comunismo e mesmo o pedido por uma intervenção militar.
Mas o que me chamou mais a atenção nas manifestações deste ano é que, desde as Marchas da Família de 1964, as direitas não realizavam uma mobilização tão expressiva. Esse é um fenômeno que vem se fortalecendo, pelo menos, desde as eleições de 2010. Há uma espécie de “onda conservadora” em crescimento.
As manifestações de rua ocorridas neste momento pedindo a volta do regime militar lhe preocupam?
Não no sentido da ameaça do retorno a uma ditadura. Há vozes aqui e ali reclamando o retorno da ditadura, mas esses setores me parecem minoritários e eu não percebo isso como o elemento mais significativo dessas manifestações. Vivemos uma democracia em construção, mas acredito que nossas instituições já se encontrem suficientemente consolidadas para que não haja espaço para o golpismo.
O que esses dois fenômenos [1964 e 2015], analisados conjuntamente, sinalizam em relação ao cenário político brasileiro?
É possível afirmar que, em grande medida, as pessoas que saíram às ruas se identifiquem com as demandas e os valores compartilhados pelas camadas médias. Mas estamos tratando de conjunturas extremamente distintas e devemos evitar o risco de incorrer em simplificações.
Nas Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, em 1964, milhares de pessoas saíram às ruas pedindo a derrubada de um presidente ou comemorando o golpe que o depôs. Essas pessoas se preocupavam com a crise econômica do período, com a contínua perda do poder aquisitivo pelas classes médias, denunciavam a corrupção no governo e em outras instituições políticas, o projeto das reformas de base e tinham muito medo de que a “ameaça comunista” viesse destruir os valores da sociedade cristã ocidental.
Nas manifestações de 2015, o elemento “mobilizador”, o “antipetismo”, se apresenta, em grande medida, como fruto da insatisfação das classes médias que se viram excluídas dos governos Lula e Dilma e do ressentimento provocado pelos programas sociais desses governos. Esses setores passaram a creditar aos governos petistas a responsabilidade por problemas estruturais do Brasil, como a corrupção. Assim, os protestos acabam sendo impulsionados pela crença de que nunca houve tanta corrupção no país e que a crise será avassaladora para esses segmentos.
Há um entendimento de que as marchas de 1964 foram o "salvo-conduto" que os militares precisavam para iniciar o golpe. Hoje, essas marchas poderiam ter o mesmo efeito?
Novamente, é importante salientar que estamos falando de conjunturas bastante distintas. Em 1964, havia uma conspiração em curso, organizada por grandes empresários, políticos e militares, entre outros setores, pela derrubada do governo João Goulart.
As marchas acabaram por servir a um discurso que pretendia conferir legitimidade ao golpe civil-militar, pois as pessoas foram às ruas, em diversas ocasiões, primeiramente, pedindo por uma intervenção das Forças Armadas e, num segundo momento, em “agradecimento” pelo feito dos militares.
Por outro lado, em 2015, os próprios comandantes das Forças Armadas vieram a público declarar que os pedidos por uma intervenção não encontrariam qualquer ressonância entre os militares. O recado que se ouviu das ruas é muito mais contundente, ele diz respeito a uma enorme descrença em relação ao sistema partidário como um todo, às novas formas de mobilização representadas pelas redes sociais, ao importante crescimento do conservadorismo na sociedade brasileira nos últimos anos.
Na sua avaliação, quão "legítimas" são as manifestações de 2015?
Elas são absolutamente legítimas. Inclusive, as tentativas de desqualificar tais manifestações por parte de alguns segmentos à esquerda ou favoráveis ao governo me preocupam, porque acabam sendo prejudiciais a uma análise que se pretenda mais refinada. Um movimento que reúna dezenas de milhares de pessoas contra um governo eleito há menos de quatro meses não pode, de maneira alguma, ser subestimado.
Não se via tamanho grau de arregimentação das direitas desde as Marchas da Família em 1964. Por outro lado, as forças progressistas e favoráveis ao governo parecem acuadas e acabaram, assim, por “ceder” às direitas o território das ruas, tradicionalmente, seu espaço de ação política.
Assim como em 1964, setores da oposição ao governo petista evocam os casos de corrupção do atual governo e uma suposta submissão do PT ao Foro de São Paulo. Em 1964, havia o temor dos "comunistas cubanos" e da União Soviética. O que essa coincidência de temores sinaliza?
Sinaliza para o retorno de certas ideias ou elementos simbólicos caros a determinados grupos sociais em momentos de crise política, nesse caso, o anticomunismo.
Nas manifestações de 2015 ele está expresso no discurso nacionalista, no temor da perda de privilégios diante de um cenário de crise ou de uma ameaça de cerceamento das liberdades individuais. Parecer haver certa fusão entre os discursos anticomunistas e “antipetistas” nas denúncias de uma suposta esquerdização do governo e nas insistentes referências, ainda que difusas, às ligações do governo com Cuba e Venezuela.
Marchas como as de 1964 e as de 2015 são vetores importantes de mudança social?
É possível vislumbrar alguns cenários diante desse momento político. Existe a possibilidade que a força dos protestos se perca devido à falta de lideranças e de organizações mais expressivas. E que, assim, o dia 15 de março encerre o que foi chamado de “terceiro turno”.
Mas é preciso que o governo não perca de vista o diálogo com as suas bases sociais e as forças progressistas que o ajudaram a se reeleger. Esse talvez seja o único caminho que o tirará do impasse em que se encontra e lhe garantirá governabilidade.
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