O que leva alguém a chamar de "herói" um acusado de tortura?
Apontado como responsável pela prática de crimes durante a ditadura, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi exaltado por simpatizantes nesta quinta-feira (15). Internautas trataram o militar como herói em comentários publicados na notícia de sua morte, em Brasília, aos 83 anos.
O coronel está na lista dos responsáveis por graves violações de direitos humanos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade, foi processado e chegou a ser condenado em primeira instância a indenizar a família de um torturado. Ele chefiou o DOI (Destacamento de Operações de Informações), em São Paulo, de 1970 e 1974, período de aguda repressão política no país. “Nesse órgão, especialmente criado pela ditadura militar para combater a oposição política, [Ustra] comandou inúmeras operações que usavam métodos ilegais como detenção arbitrária, sequestro, tortura, execução, desaparecimentos de cadáveres”, afirma Mariana Joffily, professora de História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mariana é autora de “No centro da engrenagem. Os interrogatórios da Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975)”, publicado pelo Arquivo Nacional e pela Edusp em 2013. O livro é resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2008 na USP (Universidade de São Paulo).
“Embora o coronel Ustra seja um paradigma nacional da repressão política e da tortura na época da ditadura, ele jamais teve a coragem de assumir publicamente os atos pelos quais foi responsável, seja por atuação direta, seja por sua posição hierárquica. Nem em seus dois livros, nem em suas intervenções públicas”, comenta Mariana.
No meio da década de 1970, os grupos que haviam optado pela luta armada para combater a ditadura já estavam liquidados. Muitos opositores estavam fora do Brasil, exilados. O general Ernesto Geisel, que presidia o país, prometia um processo de abertura lenta e gradual da política brasileira. Mas a repressão continuava, e Ustra é acusado de participar dela mesmo depois de deixar a chefia do DOI.
“Ele atuou no Centro de Informações do Exército, participando da chacina da Lapa [na zona oeste de São Paulo], operação que vitimou membros do comitê central do Partido Comunista do Brasil, em dezembro de 1976”, diz a professora Mariana Joffily.
Era guerra? O Brasil se tornaria comunista?
O mundo vivia a Guerra Fria, período de rivalidade e tensão entre os blocos capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e comunista, com a antiga União Soviética à frente. Apoiadores da ditadura exaltam Ustra alegando que o Brasil também estaria vivendo uma guerra na época e porque agentes do Estado como o coronel teriam impedido a implantação do comunismo no Brasil.
A ditadura começara em 1964 com um golpe que depôs o presidente João Goulart, defensor de reformas de base, como a agrária e a urbana. Para pesquisadores como Heloísa de Faria Cruz, professora de história da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e integrante da Comissão da Verdade da mesma universidade, nunca houve a possibilidade de o comunismo ser implantado no país. “João Goulart tinha a proposta de um país mais igualitário, mas não havia condição de o Brasil se tornar satélite da União Soviética”.
Se em 1964 os comunistas tinham sérias limitações para disputar o poder no Brasil, no fim de 1976, quando aconteceu a chacina da Lapa, sua situação, após anos seguidos de forte repressão, era ainda mais frágil.
Heloísa Cruz afirma que o “fantasma do comunismo” foi usado pelos militares e seus apoiadores como argumento para exterminar indivíduos e grupos, inclusive muitos que não recorreram às armas.
Violência aceita e desconhecimento
Se é assim, por que a glorificação de homens como Ustra? Para Mariana Joffily, a violência praticada pelo Estado é aceita com naturalidade por parte da sociedade brasileira. “Alguns segmentos, que antes utilizavam eufemismos para se expressarem, hoje defendem publicamente uma volta ao regime autoritário e seus métodos repressivos. São setores que vêm os conflitos gerados por nossa feroz desigualdade social e econômica em termos de guerra”.
A pesquisadora acrescenta que muitos dos atos violentos cometidos pela ditadura não vieram à tona em função da censura imposta aos meios de comunicação na época. A repressão a camponeses e a indígenas, por exemplo, ganhou pouca notoriedade nos centros urbanos.
Para Heloísa Cruz, a exaltação a um acusado de tortura está relacionada à forma como a sociedade brasileira lidou como seu passado ditatorial. Ela lembra que os opositores foram presos e mortos, submetidos a tortura e julgados enquanto os agentes do Estado ganharam o perdão da lei da Anistia, de 1979, sem que seus crimes fossem amplamente conhecidos. A herança da ditadura, diz a professora da PUC-SP, não foi discutida. “O Brasil fez um pacto para o esquecimento. As novas gerações não têm como avaliar como foi a vida na ditadura”.
A historiadora também entende que a tortura e a execução de pessoas por agentes do Estado são vistas como normais por parte dos brasileiros, embora convenções internacionais imponham regras para impedir a barbárie e fazer com que o Estado respeite a integridade de cidadãos sob sua custódia.
Fermino Fechio, advogado e ex-ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, concorda com Heloísa sobre a falta de informação a respeito dos crimes praticados na ditadura como motivo para a exaltação de Ustra. “É desconhecimento, ignorância. A história não foi contada para eles. Não tem livro didático [sobre isso]. Nas nossas escolas, não se fala disso. Essa parte da história sempre foi escondida. Esse país foi vilipendiado [pela ditadura]”.
Fechio integra a Comissão da Verdade do município de São Paulo e entende que a morte de Ustra reforça a necessidade de o país resgatar a história e ressalta a importância do papel dessas comissões que tentam revelar informações sobre o período da ditadura. “O Brasil precisa saber o que aconteceu”.
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