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Juiz da Carne Fraca diz que expor suspeitos é ônus de transparência em investigações

O juiz Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba, onde estão casos como a Carne Fraca e a Hashtag - Xinhua/Ernani Ogata/Codigo19/Agência Estado
O juiz Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba, onde estão casos como a Carne Fraca e a Hashtag Imagem: Xinhua/Ernani Ogata/Codigo19/Agência Estado

Rafael Moro Martins

Colaboração para o UOL, em Curitiba

14/06/2017 04h00

Quando a Polícia Federal deu início, em março passado, à Operação Carne Fraca, chamou a atenção que uma tradicional e respeitada indústria de mel do sul do Paraná estivesse entre os frigoríficos investigados. O empresário Henrique Breyer afirmou que nada havia de errado e falou em "prejuízo incalculável". O tempo lhe deu razão: nem ele nem sua empresa estavam na lista de acusados de crimes pelo Ministério Público Federal.

Para o juiz federal Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba, casos como esse são um "ônus" da ampla divulgação de operações policiais que combatem crimes contra a administração pública, algo que se tornou rotina nos últimos anos --e que atingiu proporções inéditas após o início da Operação Lava Jato.

"Não diria [que a divulgação da Carne Fraca e de outras operações foram] espalhafatosas. Adotou-se como regra a publicidade, inclusive de diálogos, quando se suspeita que tratam de crimes, especialmente contra a administração pública. Claro que a divulgação de suspeitos que não são nem denunciados, ou depois acabam absolvidos, é embaraçosa. É um ônus da publicidade. A questão é o que vamos priorizar no trabalho de combate a crimes contra a administração pública: a publicidade da investigação ou a intimidade dos suspeitos. A publicidade é um valor constitucional, inclusive", argumentou.

Josegrei recebeu a reportagem do UOL para uma longa conversa, em seu gabinete, no mesmo prédio da Justiça Federal num tranquilo bairro de classe média alta da região norte de Curitiba em que trabalha Sérgio Moro, o julgador dos processos da Lava Jato na primeira instância.

Mesmo sem a fama de Moro, Josegrei igualmente toca casos que ganharam as manchetes em todo o país. Além da Carne Fraca, é o responsável pelos processos das operações Hashtag, que, pela primeira vez no Brasil, condenou suspeitos de terrorismo, e Research, que apura fraudes no pagamento de bolsas e auxílios de pesquisa na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Diferentemente de Moro, descrito por auxiliares como tímido e reservado ao extremo, Josegrei é afável e disposto a discorrer sobre os casos em que atua, principalmente a Hashtag, cujo trâmite na primeira instância já se encerrou.

"O fundamento da sentença não é o planejamento de ato terrorista, mas a promoção do terrorismo. O verbo promover se presta a vários significados. O que eu usei é um deles, o de propagandear o terrorismo. E [o contexto] não é uma invenção da minha cabeça. Segue uma resolução da ONU [Organizações das Nações Unidas], por exemplo. Vamos ver o que os tribunais, em última análise o STF [Supremo Tribunal Federal], vão dizer sobre o que é promover o terrorismo."

 Leia os principais trechos da entrevista.

 A transparência nas investigações

 "Não diria [que a divulgação da Carne Fraca e de outras operações foram] espalhafatosas. O fenômeno que aconteceu nos últimos anos foi uma maior transparência do trabalho das investigações. Antes, se evitava muito a publicidade de diálogos, interceptações telefônicas, na fase investigatória. Nos últimos anos, adotou-se como regra a publicidade, inclusive de diálogos, quando se suspeita que tratam de crimes, especialmente contra a administração pública. Claro que a divulgação de suspeitos que não são nem denunciados, ou depois acabam absolvidos, é embaraçosa. Mas eu acho que é um ônus da publicidade. A questão é o que vamos priorizar no trabalho de combate a crimes contra a administração pública: a publicidade da investigação ou a intimidade dos suspeitos. A publicidade é um valor constitucional, inclusive."

Carne Fraca - Li Ming/Xinhua - Li Ming/Xinhua
Frigorífico em Rio Verde (GO) investigado na Operação Carne Fraca
Imagem: Li Ming/Xinhua
Carne Fraca

"[A operação] Não foi uma idiotice [o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, chegou a dizer que parte das suspeitas levantadas eram uma 'idiotice']. Talvez [a divulgação] tenha tido um foco maior na qualidade dos produtos, mas o foco principal da investigação é desvio de conduta de servidores públicos, proprietários e empregados de frigoríficos que aparentemente corromperam, deram benefícios a fiscais. A corrupção já está na agenda há bastante tempo. Mas, quando se relacionou a algo que diretamente se põe na mesa, ganha uma repercussão muito maior.

Operações [policiais] posteriores acabaram por mostrar que algumas empresas eram investigadas por práticas indevidas e que investigações tinham fundamento. Depois da Carne Fraca, vieram mais duas investigações sobre o Ministério da Agricultura, em Santa Catarina e no Tocantins. Ajudaram a mostrar que [a operação Carne Fraca] foi um trabalho correto, que há problemas no relacionamento de algumas empresas com alguns funcionários públicos, algo que pode ocorrer em outros locais.

As denúncias [apresentadas pelo Ministério Público Federal com base na investigação da PF] envolvem exclusivamente pessoas presas, suspeitos relacionados a elas e os crimes de corrupção, prevaricação, organização criminosa e casos pontuais de crimes contra a saúde pública. Mas ninguém foi denunciado, ainda, por lavagem de dinheiro. Isso significa que a investigação sobre o fluxo de dinheiro ainda não acabou. O inquérito segue tramitando."

Operação Hashtag - Mario Angelo/Sigmapress/Agência Estado/Xinhua - Mario Angelo/Sigmapress/Agência Estado/Xinhua
Agentes da Polícia Federal levam suspeito detido na Operação Hashtag em julho de 2016
Imagem: Mario Angelo/Sigmapress/Agência Estado/Xinhua
A condenação por terrorismo

"O fundamento da sentença não é o planejamento de ato terrorista. A tese da defesa dizia que promover o terrorismo era praticar um ato. O verbo promover se presta a vários significados. O que eu usei é um deles. E [o contexto] não é uma invenção da minha cabeça. Segue uma resolução da ONU, por exemplo, o código penal alemão tem um crime igual a esse, a lei antiterrorismo inglesa também. A lei [antiterrorismo brasileira] tem um tipo penal para o sujeito que comete um ato de terrorismo, outro para quem está preparando um e ainda mais um, o mais brando, para quem está apenas propagandeando o terrorismo. O significado de uma lei é dado pelo Poder Judiciário. Vamos ver o que os tribunais vão dizer. É o primeiro caso [de julgamento baseado na lei antiterrorismo]. Vamos ver o que os tribunais, em última análise o STF, vão dizer sobre o que é promover o terrorismo.

Sete dos oito suspeitos foram denunciados pelos crimes de promover organização terrorista, associação criminosa e corrupção de menores. O oitavo, Leonid [El Kadre de Melo], também por recrutamento para organização terrorista. Por que razão promover --no sentido de fazer propaganda, exaltar, estimular os feitos, a adesão ao grupo-- deve ser considerado crime? O Conselho de Segurança da ONU recomenda a criminalização dessa conduta.

Contra sete dos acusados não se conseguiu provas concretas de preparo de atos terroristas. Mas eles comemoravam ataques terroristas, postavam regularmente [em redes sociais] imagens de exaltação e estimulação dos atos. Isso é o suficiente para caracterizar esse crime, como é suficiente para caracterizar o crime de pedofilia cometido por alguém que armazena e transmite imagens de crianças. Eles receberam penas próximas do mínimo, perto de cinco anos. Leonid tinha outro crime, o de recrutamento. Ele dizia: 'Cansei de lutar com a língua, quero lutar com a mão'. Poucos dias antes da deflagração da operação, ele postou no grupo dando um prazo: ou se formava uma célula terrorista, ou ele estava fora. E ele já tinha duas condenações judiciais, por roubo e assassinato de um comparsa, no Tocantins.

Faço uma comparação, na sentença, que é mais ou menos a seguinte: dá para considerar um sujeito que transmite imagens de crianças nuas, em situações eróticas, na internet, como pedófilo? Se você considerar que pedófilo é só quem ataca fisicamente uma criança, não. Mas, se você considerar que é pedófilo quem ajuda a disseminar a prática, sim."

Fachada da UFPR - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Fraudes na UFPR

"Quando recebi [os pedidos de prisão da PF], parecia que haveria o envolvimento de pessoas mais acima [das servidoras agora acusadas de comandar o esquema criminoso]. Mas o que se revelou, até agora, é que não. Havia um estratagema de servidoras muito antigas [na universidade], que tinham um poder de gerenciamento muito alto. Segundo a própria Conceição [de Abreu Mendonça, uma das acusadas de planejar a fraude], ela testou o sistema [de pagamentos de bolsas], percebeu que [superiores hierárquicos] não perceberam e foi enxertando pagamentos fraudulentos.

Sobre os dois professores [a atual vice-reitora da UFPR, Graciela Bolzón, e o ex-pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa, Edílson Sérgio Silveira], o MPF denunciou a ambos, mas por crimes de juizado. Silveira aceitou a transação penal [possibilidade prevista na lei para que, em crimes de menor potencial ofensivo, o Ministério Público negocie com o acusado qual será a pena a ser cumprida]. Já a professora Graziela não aceitou, porque, como o inquérito ainda não acabou, o advogado diz não querer correr o risco de ser surpreendido com outros fatos e perder o direito de fazer a negociação [da transação]. Segundo o advogado, é uma estratégia processual. Aparentemente, até agora parece que [os pró-reitores] assinaram os documentos de boa-fé.

Chamou a atenção o fato de por que as pessoas emprestaram as contas. A maioria é gente simples, dá para chamar de laranja, sim. Alguns sabiam que as contas seriam usadas [para desviar dinheiro]. No fundo, a pessoa sabe, mas, nessa nossa cultura, 'fazem coisa tão pior, vou tirar uma vantagenzinha também'. Alguns, inclusive, reclamaram à PF que o dinheiro prometido para 'alugar' as contas, uns R$ 500, R$ 1.000 mensais, não haviam sido pagos. Uma mulher, que era manicure, ouviu a seguinte conversa: 'Preciso receber uns atrasados da universidade, mas minha conta está negativa. Se entrar ali, o banco vai tomar. Me empresta a sua?'. Depois, a pessoa percebeu que deveria haver algo errado e se negou a emprestar novamente.

Existem ainda outras linhas de investigação em andamento, que apuram licitações de compras de materiais que não teriam sido entregues."