Artigo: A decisão no caso Lula e a impunidade sistêmica
Na decisão que o Supremo Tribunal Federal tomará no habeas corpus do ex-presidente Lula está em jogo muito mais do que a sua prisão. Corremos o risco de ter uma Justiça criminal de faz de conta para poderosos, que passará a mensagem de que o crime, sim, compensa.
Isso porque o Supremo tende a definir a possibilidade ou não de prender qualquer réu, em qualquer caso, após sua condenação em segunda instância. Se essa prisão for impedida, o leitor reclamará por muitos anos que nenhum grande criminoso é preso no Brasil, não só por corrupção, mas também por homicídio, pedofilia, crimes contra o sistema financeiro e assim vai.
É preciso compreender que o Brasil é o único país com quatro instâncias e que a possibilidade de poderosos recorrerem parece não ter fim. O ex-deputado Carli Filho, por exemplo, condenado por homicídio, recorreu 34 vezes antes do julgamento em primeira instância, que demorou nove anos.
O ex-senador Luiz Estevão, condenado por corrupção, recorreu 36 vezes e só foi preso exatamente porque o Supremo, em 2016, voltou a permitir a prisão em segunda instância. Ainda assim, a prisão demorou 17 anos para acontecer.
A Justiça tem sido muito célere em Curitiba e no Tribunal de Porto Alegre. Contudo, se o Supremo impedir a prisão do ex-presidente agora que sua condenação foi julgada em segunda instância, ele terá à disposição generosos recursos em mais dois tribunais de Brasília, usualmente sobrecarregados e morosos. Isso significa que sua prisão, se acontecer, demorará muitos anos.
No caso brasileiro, Justiça lenta não é apenas injustiça, mas plena impunidade. Isso porque nosso sistema favorece a prescrição, uma espécie de cancelamento dos crimes pelo decurso do tempo.
A corrupção do caso Propinoduto, em que auditores foram condenados por receberem dezenas de milhões de dólares em propinas, prescreveu. Os desvios de dinheiro público de mais de um bilhão de reais do caso Marka FonteCindam igualmente prescreveram.
Estou cansado de ver essa mesma história se repetir. Na prática, a prescrição significa que pessoas condenadas por haver fartas provas de corrupção deixarão de sofrer qualquer consequência por seus crimes. No caso do ex-presidente, por ter mais de 70 anos de idade, o tempo para a prescrição cai pela metade, o que o beneficia.
Além da injustiça que faz o crime compensar, impedir a prisão em segunda instância acaba com as delações premiadas. De fato, por que um réu revelaria crimes ocultos, devolveria o dinheiro desviado e aceitaria ser punido, ainda que com uma pena reduzida, quando pode se safar completamente?
O Supremo tem, evidentemente, legitimidade para tomar a decisão que quiser e ela deve ser cumprida. Agora, é igualmente legítimo discutir os fundamentos dessa decisão e os efeitos dela sobre todos nós.
O argumento constitucional contra a prisão em segunda instância decorre da seguinte definição da presunção de inocência na Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Articula-se que essa regra exigiria que a prisão aguardasse o julgamento de todos os recursos de todas as instâncias.
Contudo, levada tal regra à risca, ela conduziria ao absurdo. Ela impediria não só a prisão, mas que qualquer criminoso fosse sequer investigado, acusado ou preso em flagrante. Afinal, não se faz isso com um presumido inocente. É evidente que a presunção de inocência tem graus de força que diminuem progressivamente ao longo da investigação e do processo.
Além disso, desde a vigência da Constituição até 2009, sempre se entendeu que a prisão em segunda instância era constitucional. A própria Assembleia Constituinte não teve um discurso sequer em sentido contrário – creio que jamais o constituinte imaginaria tal distorção.
De fato, impedir a prisão após a segunda instância é uma distorção, esta sim merecedora da pecha de inconstitucionalidade. Primeiro, porque esvazia o direito fundamental à Justiça. Segundo, faz letra morta da regra constitucional da duração razoável do processo.
Terceiro, porque acaba com a proteção que o direito penal dá sobre a vida, a liberdade, a dignidade, a propriedade e outros valores quando o criminoso é poderoso. Quarto, países democráticos que garantem a presunção de inocência autorizam a prisão até mesmo depois do julgamento de primeira instância.
Com efeito, a presunção de inocência é uma garantia de que a punição só acontecerá depois de um julgamento em que o ônus de provar está sobre a acusação. Isso é mais do que respeitado se a prisão ocorrer em segunda instância. Aliás, recursos para os dois andares superiores da Justiça não revisam fatos e provas, mas estão limitados à matéria legal e constitucional, gerando absolvições em menos de 1% dos casos.
Tudo isso me faz acreditar que mudar o precedente de 2016, sem qualquer alteração na realidade ou no Direito, e postergar ainda mais o momento da prisão seria uma escolha clara em favor de uma interpretação cuja principal força é proteger os poderosos e o sistema de corrupção, que continuarão a todo vapor.
* Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba (PR).
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