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Vetada por Damares, criptomoeda indígena visava a encorajar economia local

Jair Bolsonaro e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na cerimônia de posse  - Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo
Jair Bolsonaro e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na cerimônia de posse Imagem: Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Juliana Carpanez*

Do UOL, em São Paulo

12/01/2019 04h01

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira (7) que "muitos contratos foram desfeitos e serão expostos, como o de R$ 44 milhões para criar criptomoeda indígena que foi barrado pela Ministra Damares e outros".

A suspensão --realizada pela ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, na quarta-feira (2)-- refere-se a um contrato de R$ 44,9 milhões entre Funai (Fundação Nacional do Índio) e UFF (Universidade Federal Fluminense).

Com propostas para o "fortalecimento institucional" da Funai, o documento foi assinado em 28 de dezembro e ia além da criptomoeda, que era uma entre as 16 iniciativas listadas. Procuradas pela reportagem, as duas instituições não retornaram ao pedido de entrevista.

 
Criptomoedas são arquivos digitais que funcionam como moedas alternativas: não são impressas por bancos nem governos, mas sim criadas por um processo computacional chamado "mining" (mineração). Essas moedas e todas as transações que a envolvem ficam registradas na internet.

Segundo o relatório, a moeda seria lastreada pelo real: assim, cada unidade dela teria o mesmo valor de R$ 1. 

A proposta da UFF

O documento com 38 páginas propõe a criação de 16 "produtos" referentes a três diferentes áreas: 1) desenvolvimento humano e funcional; 2) gestão, fiscalização e acessibilidade de terras indígenas; 3) desenvolvimento tecnológico orientado a licenciamento, seguridade social e valorização da produção indígena. 

É neste último item que entra o estudo da viabilidade da moeda virtual, ao desenvolvimento dessa plataforma e a sua implantação (veja mais detalhes abaixo). No total, o tempo previsto para a execução seria de até 24 meses. 

Também na área de tecnologia, a proposta da UFF à Funai previa mapear a cadeia produtiva indígena. Com uso de uma tecnologia chamada blockchain (espécie de banco de dados, usado também para o funcionamento das criptomoedas), um selo indígena forneceria informações sobre determinado produto: a sua origem, o produtor, se foi produzido de maneira sustentável, por exemplo. 

Confira a seguir detalhes do projeto sobre a criptomoeda indígena. 

Levantamento de requisitos - de 1 a 6 meses 

O objetivo do levantamento, informa o relatório, seria fazer um diagnóstico da viabilidade da criação da criptomoeda indígena. O modelo de governança seria baseado em dois eixos. 

Primeiro, a criação de um selo indígena: as aldeias que atingissem requisitos para a emissão desse selo receberiam um repasse das moedas virtuais.

O segundo seria a adoção da criptomoeda em feiras (físicas) indígenas e o desenvolvimento de uma plataforma de comércio eletrônico, com base nesse sistema financeiro virtual, para venda internacional de produtos certificados.

Desenvolvimento da plataforma - de 4 a 21 meses 

Nesta fase, seria definido o funcionamento do sistema. Também seria gerada uma descrição computacional, continua a proposta, mencionando o que o software deveria fazer.

A descrição dessa etapa e os prazos servem tanto para a plataforma da criptomoeda como para a rastreabilidade da cadeia produtiva indígena ("funcionando como parte de uma estratégia de gestão de digitalização para melhorar a transparência, eficiência, competitividade e sustentabilidade das comunidades").

15.out.2015 - Criança do povo kamayura carrega macaco em sua taba no Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso. A tribo é formada por 300 pessoas e é uma das 16 etnias que vivem na área - Paulo Whitaker/Reuters - Paulo Whitaker/Reuters
15.out.2015 - Criança do povo kamayura carrega macaco no Parque do Xingu, em MT.
Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

Implantação das plataformas

A implantação da plataforma do projeto de mapeamento ligado ao selo levaria de 13 a 15 meses e, segundo o relatório, estaria ligada à produção agrícola e artesanal. Seria uma ferramenta para que indígenas, governos, consumidores e ONGs pudessem partilhar das mesmas informações sobre validade e proveniência dos produtos indígenas. 

"De uma aldeia distante no seio da floresta nativa, os produtos percorrem um longo caminho até chegar ao consumidor final. Há muito que os consumidores finais [e, portanto, os comerciantes e varejo] gostariam de saber mais sobre esses produtos. Por exemplo, eles são seguros? Atendem aos princípios da agrobiodiversidade? Eles são produzidos de forma sustentável? Em que tipo de solo as plantas crescem? Quais foram as condições de trabalho? Temos certeza de sua segurança e sustentabilidade se eles carregam tal certificado?", exemplifica o relatório da UFF.  

Já a implantação da criptomoeda ficaria entre 21 e 24 meses, também em projeto piloto realizado em uma feira específica. "A proposta [...] é 'recriar' as já tradicionais moedas sociais por meio da tecnologia blockchain, para ser a base das transações da feira indígena Moitará", diz o relatório.

"Historicamente, o Moitará constitui a única ocasião em que tribos diferentes acampam no mesmo local. É um ritual de troca de artefatos ligados à especialização manufatureira de cada grupo, realizado entre os índios do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. A criptomoeda seria usada com o objetivo de encorajar os indígenas de uma determinada comunidade a gastar localmente, apoiando assim os ecossistemas locais", pontua a proposta da UFF.

Moedas comunitárias migram para o digital

Professor da FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) e pesquisador de moedas comunitárias digitais, Eduardo Diniz afirma que, assim como tem acontecido com todos os outros sistemas de pagamento, há um processo crescente de digitalização de moedas comunitárias - segundo ele, estima-se que atualmente existam cerca de 6.000 delas pelo mundo, muitas delas em comunidades isoladas ou desassistidas. 

"Desde 2015/2016, gestores dessas moedas comunitárias começaram a considerar também a adoção das tecnologias usadas nas criptomoedas como alternativa, devido à maior eficiência contábil dessas tecnologias", explica. "Por isso, não seria de se estranhar a adoção desse tipo de ferramenta também por comunidades indígenas, principalmente nas localidades onde já se usa telefone celular." Antes de tecnologias como blockchain, era mais difícil ter uma contabilidade transparente e homologada pela comunidade.
 
Segundo Diniz, essas moedas servem como instrumento para um grupo realizar trocas entre seus membros, que compartilham uma mesma região geográfica ou outro valor comum (usuários de um jogo online, por exemplo). "O fato de não terem dinheiro [tradicional] não diminui as necessidades dessas pessoas, que precisam comprar comida ou contratar serviços localmente, por exemplo. Então cria-se um padrão de troca, com um mecanismo interno mais justo para todos os envolvidos", diz o pesquisador.

*Colaborou Eduardo Militão