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Com Libras e voluntariado, Michelle foge da sombra de Bolsonaro

Michelle Bolsonaro discursou em Libras na posse presidencial Jair Bolsonaro (sem partido) antes mesmo dele -
Michelle Bolsonaro discursou em Libras na posse presidencial Jair Bolsonaro (sem partido) antes mesmo dele

Luciana Amaral

Do UOL, em Brasília

24/12/2019 04h00Atualizada em 26/12/2019 13h09

Resumo da notícia

  • Michelle Bolsonaro tem atuado ativamente em trabalhos sociais e voluntários
  • Primeira-dama ajudou a lançar o projeto Libras Gov e o programa Pátria Voluntária
  • Papel de mulheres de presidentes no Brasil ainda estão muito vinculados às causas sociais, diz socióloga
  • Para professora, no entanto, Michelle também é vitrine importante da política de costumes conservadores de Bolsonaro

Ela quebrou o protocolo e discursou em Libras (Língua Brasileira de Sinais) na posse de Jair Bolsonaro (sem partido). Um ano depois, Michelle Bolsonaro tem mostrado ser uma primeira-dama disposta a extrapolar a órbita do marido.

Ao longo de 2019, Michelle ajudou a lançar o projeto Libras Gov, que criará sinais em Libras para pessoas, cargos e funções ligados aos Três Poderes, e o programa Pátria Voluntária, de incentivo ao trabalho voluntário no país. Nesses eventos, discursou no salão nobre do Planalto junto a grupos de crianças e organizações de ajuda a pessoas com deficiência.

Antes de Bolsonaro se tornar presidente, ela já era engajada na área da linguagem de sinais e intérprete de Libras na Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Agora como primeira-dama, Michelle, que tem familiares surdos, ganhou espaço para ampliar a visibilidade do assunto.

Neste ano, a primeira-dama também trabalhou de forma conjunta com os ministérios da Cidadania e da Saúde em prol de projetos voltados à primeira infância. Um deles foi o Criança Feliz, que contou com sua antecessora no posto, Marcela Temer, como embaixadora informal.

Marcela Temer, mulher do ex-presidente Michel Temer (MDB), se dedicou ao programa Criança Feliz e a receber visitas governamentais no Palácio da Alvorada - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
Marcela Temer, mulher do ex-presidente Michel Temer (MDB), se dedicou ao programa Criança Feliz e a receber visitas governamentais no Palácio da Alvorada
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Michelle ainda esteve na Câmara dos Deputados mais de uma vez em 2019 para eventos relacionados a pessoas com deficiência, como microcefalia, e doenças raras.

"Quero dedicar os meus esforços de conscientização não só a todas as pessoas afetadas por enfermidades raras, mas também aos agentes de saúde, às instituições sociais e aos familiares que corajosamente todos os dias lutando pelo avanço desta causa. Contem com o meu apoio, pois essa é a minha luta", disse no plenário da Casa, em fevereiro.

No início de setembro, após a história de um menino autista de dois anos que deixou de ser convidado para a festa de um amigo por ser "meio problemático" correr o Brasil, Michelle participou de festa especialmente para ele promovida no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Jair Bolsonaro, a ministra da pasta, Damares Alves, e o ministro da Cidadania, Osmar Terra, também estiveram presentes.

Vitrine de costumes conservadores

Na opinião da socióloga Débora Messenberg Guimarães, professora doutora da Universidade de Brasília, além da defesa de surdos e outras pessoas com deficiências, Michelle Bolsonaro serve como vitrine importante da política de costumes conservadores defendida pelo atual presidente da República.

Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro participam de culto em igreja evangélica no Rio de Janeiro, em maio - Jose Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo - Jose Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo
Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro participam de culto em igreja evangélica no Rio de Janeiro, em maio
Imagem: Jose Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo

"Existe um movimento conservador que ganhou espaço com a eleição do Bolsonaro, principalmente em relação aos evangélicos [...] Então, a expectativa é que o trabalho da Michelle cresça por ser uma referência importante para essa parcela da população", afirma.

Em agosto, Bolsonaro afirmou descartar que Michelle atue oficialmente como embaixadora de algum programa do governo federal por medo de que ela possa ser criticada. "Porque vai ter falatório, fuxico", disse.

No sábado (21), em balanço de 2019 com jornalistas na beira da piscina do Palácio da Alvorada, o presidente disse gostar que Michelle não fique falando de política em casa, porque seria "uma continuação do que acontece na Presidência" e ficaria "chato".

"Algumas coisas ela fala aqui têm a ver com a área dela. A questão das pessoas com deficiência etc. Agora, ela tem uma vida presa em casa. [Ela puxa a orelha] do ritmo de trabalho quando trago gente para conversar em casa sábado e domingo", revelou.

Ainda assim, Bolsonaro já declarou em diferentes oportunidades ouvir a opinião da mulher ao tomar decisões importantes e atribui a ela o fato de ter mantido a pensão para deficientes intelectuais com grau leve ou moderado em caso de morte dos pais no texto da reforma da Previdência.

Cuidado ainda é relacionado ao feminino

Apesar de não terem vínculo com o governo, muito menos serem obrigadas a colaborar com a gestão do marido, historicamente, as primeiras-damas brasileiras se vincularam ao voluntariado e causas sociais.

A socióloga Débora Messenberg Guimarães afirma que o histórico de filantropia está diretamente relacionado ao cuidado como prerrogativa do feminino na cultura ocidental.

Michelle Bolsonaro com rapaz que sofre de epidermólise bolhosa durante visita oficial em Campina Grande, na Paraíba, em abril - Reprodução/Instagram/lerystonleleu - Reprodução/Instagram/lerystonleleu
Michelle Bolsonaro com rapaz que sofre de epidermólise bolhosa durante visita oficial em Campina Grande, na Paraíba, em abril
Imagem: Reprodução/Instagram/lerystonleleu
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Segundo ela, esse papel continua a ser reforçado pelas últimas primeiras-damas, embora não tenham nenhuma função institucional - "é uma condição", diz -, com exceção de Ruth Cardoso, antropóloga, professora universitária e pesquisadora, morta em 2008.

Ela [Ruth] tinha uma profissão antes de virar primeira-dama. Em termos acadêmicos, tinha um prestígio maior do que o próprio marido. Ela tinha projeção internacional e quis demarcar que sua contribuição seria por uma via intelectual e política de projetos sociais, mas sem caridade
Débora Messenberg Guimarães, socióloga da Universidade de Brasília

A socióloga destaca a vontade de primeiras-damas no exterior de não se aterem mais a esse papel, como nos Estados Unidos com Michelle Obama e Hillary Clinton. Ambas têm perfil mais intelectual e político.

A primeira, advogada, lançou um livro que virou best-seller e ganha dinheiro com palestras. A segunda já trabalhou como secretária de Estado norte-americana e ficou em segundo lugar nas últimas eleições presidenciais do país, atrás do eleito Donald Trump após campanha acirrada.

"Depende da construção social e da formação de cada uma. Elas ganharam espaços pela própria competência", afirma Débora.

1 milhão de seguidores

No Instagram, a primeira-dama brasileira criou perfil oficial onde compartilha fotos do dia a dia, atividades ligadas ao governo e vídeos para campanhas de conscientização. Idas a instituições de caridade, de apoio social e a hospitais fazem parte da rotina divulgada.

Atualmente, Michelle conta com 1 milhão de seguidores. Em agosto, surpreendeu ao postar lingeries que ganhou de presente nos Stories, onde as imagens ficam um dia no ar e depois são apagadas

Procurada pela reportagem, por meio da Presidência, Michelle Bolsonaro não se manifestou sobre seu trabalho ao longo do ano

Histórico de filantropia, com Ruth Cardoso mais acadêmica

A mulher do ex-presidente Getúlio Vargas, Dercy Vargas, chegou a criar a Legião Brasileira de Assistência (LBA), em 1942, financiada com recursos públicos e privados, para ajudar famílias de militares enviados à 2ª Guerra Mundial. A LBA contou com alto grau de mulheres em retórica que valorizava a mulher como mãe e esposa na vida doméstica. Nos municípios, a iniciativa era comandada pelas mulheres dos prefeitos.

Outras primeiras-damas também presidiram a Legião, mas, nem todas passaram incólumes. A então mulher do ex-presidente Fernando Collor de Mello (Pros), Rosane Collor, foi acusada de fraude, corrupção passiva e peculato à frente da LBA. Acabou inocentada.

Quem extinguiu a LBA foi Fernando Henrique Cardoso em seu primeiro dia de mandato em 1995. FHC era marido de Ruth Cardoso, quem mais procurou fugir dessa veia assistencialista protagonizada por primeiras-damas.

De perfil acadêmico, Ruth Cardoso não gostava do título de primeira-dama e procurou imprimir característica menos assistencialista a programa de governo no mandato do marido, Fernando Henrique Cardoso - Sérgio Lima/Folhapress - Sérgio Lima/Folhapress
De perfil acadêmico, Ruth Cardoso não gostava do título de primeira-dama e procurou imprimir característica menos assistencialista a programa de governo no mandato do marido, Fernando Henrique Cardoso
Imagem: Sérgio Lima/Folhapress

Acadêmica, Ruth não gostava do título de primeira-dama e substituiu a LBA pelo programa Comunidade Solidária. A nova iniciativa buscou reverter a mentalidade de que assistencialismo era sinônimo de entrega de alimentos e investir na capacitação profissional dos mais pobres. O empresariado também foi estimulado a participar de parcerias.

Como mencionado, a mulher do ex-presidente Michel Temer (MDB), Marcela Temer, se dedicou ao programa Criança Feliz, então pertencente ao Ministério do Desenvolvimento Social, fundido à nova pasta da Cidadania e já comandado por Osmar Terra.

"Quem ajuda aos outros, muda a história de vida. Por isso, fico feliz em colaborar em causas sociais do país. Cada brasileiro, desde a gestação, importa para o desenvolvimento do Brasil. Nossas responsabilidades aumentam a cada dia, e os desafios também. Meu trabalho será voluntário, para mobilizar e sensibilizar a sociedade em torno de ações para melhoria na vida das pessoas", declarou Marcela na época.

A ligação de Marcela ao programa também foi articulada numa tentativa de melhorar a imagem de Michel Temer, um dos presidentes mais impopulares da história do Brasil. Contudo, ela acabou não ganhando o protagonismo previsto inicialmente, inclusive com planejamento de tour pelo país para conseguir apoio dos governadores que nunca saiu do papel. O Criança Feliz continua em funcionamento, mas sem tanta projeção quanto no governo Temer.

Assim como Michelle, Marcela recebeu visitas de crianças carentes no Palácio da Alvorada - embora morasse no Palácio do Jaburu - e promoveu reuniões com autoridades sobre a primeira infância. Ela também criou um perfil oficial no Instagram, hoje com 99,3 mil seguidores.

No entanto, se comparada a Michelle Bolsonaro, esta costuma aparecer mais em público, tanto em eventos oficiais quanto em compromissos mais informais, e abraça mais áreas de atuação.

Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), morta em 2017, não se envolveu diretamente em programas sociais, preferindo atuar em bastidores partidários - Fernando Donasci/UOL - Fernando Donasci/UOL
Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), morta em 2017, não se envolveu diretamente em programas sociais, preferindo atuar em bastidores partidários
Imagem: Fernando Donasci/UOL

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) já estava separada do segundo marido há 11 anos quando assumiu o Palácio do Planalto.

Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), morta em 2017, por sua vez, optou por não se envolver em projetos sociais. Ela costumava aconselhar Lula e acompanhá-lo em eventos partidários e agendas especiais da Presidência, além de visitar órgãos do governo de seu interesse, mas não tomou uma causa para si.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que afirmou a socióloga Débora Messenberg Guimarães no nono parágrafo do texto, a primeira-dama não é evangélica neopentecostal, mas, sim, batista. O texto foi corrigido.