Aliados usam lei da ditadura militar para blindar Bolsonaro
Tratada nas últimas décadas como uma herança da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, a Lei de Segurança Nacional voltou a ser usada, dessa vez com o intuito de reprimir declarações críticas ou prejudiciais ao presidente Jair Bolsonaro (Sem partido). Para juristas ouvidos pelo UOL, a legislação de exceção afronta direitos fundamentais e se tornou um instrumento de intimidação.
A última citação à Lei de Segurança Nacional ocorreu em inquérito aberto pela PF (Polícia Federal) para investigar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a pedido do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública). O petista prestou depoimento ontem (19), em Brasília, sobre declarações que deu em discursos públicos pouco depois de deixar a prisão, em novembro.
Antes, o procurador-geral da República, Augusto Aras —nomeado por Bolsonaro— já havia solicitado a abertura de uma investigação contra o porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde vivia Bolsonaro até tomar posse na Presidência, por ter dito em depoimentos que foi "seu Jair" quem autorizou a entrada do ex-PM Élcio do Queiroz, um dos assassinos da vereadora Marielle Franco, no local, no dia do crime. Segundo o MP-RJ (Ministério Público do Rio), lá ele encontrou o policial reformado Ronnie Lessa, o outro réu pela morte de Marielle. Os dois partiram juntos para cometer o crime. O depoimento do porteiro foi desmentido por perícias feitas pelo MP-RJ e pela Polícia Civil do Rio.
Nos dois casos, a justificativa foi que teria havido uma violação ao artigo 26 da legislação, que trata de "caluniar ou difamar o presidente da República, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação".
Em 9 de novembro, um dia depois de deixar a Superintendência da Polícia Federal do Paraná, onde estava preso, o ex-presidente Lula afirmou em evento no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, que Bolsonaro "foi eleito para governar para o povo brasileiro, e não para governar para os milicianos do Rio de Janeiro".
No dia 21 daquele mês, em vídeo endereçado ao MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), Lula voltou a associar o presidente às milícias: "Não é possível que um país do tamanho do Brasil tenha o desprazer de ter no governo um miliciano", disse.
Em nota, o Ministério da Justiça confirmou que Moro pediu a abertura do inquérito com base na Lei de Segurança Nacional: "O Ministério da Justiça e Segurança Pública requisitou a apuração contra Lula, assim que ele deixou a prisão, para investigar possível crime contra a honra do Presidente da República".
Para o jurista Walter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a tipificação sugerida por Moro é "absolutamente inadequada".
"Isso [as declarações de Lula] se enquadra no direito de crítica e de opinião. Quem se sentiu ofendido que use a ação adequada, no caso por calúnia, injúria ou difamação", explica. "O espírito dessa lei vem de um regime de exceção, para manter uma ditadura. Essa lei não tem enquadramento em um Estado Democrático de Direito, quando se critica um governo ainda que de forma pesada".
Maierovitch lembra que, apesar de sua origem ditatorial, a Lei de Segurança Nacional teve sua validade mantida após a promulgação da Constituição de 1988 pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
No ano passado, o ministro Alexandre de Moraes, do próprio STF, usou duas vezes a legislação —em abril e setembro— para embasar pedidos de busca e apreensão no âmbito do inquérito das fake news, aberto de ofício pelo presidente da corte, Dias Toffoli, com o objetivo de investigar ataques ao Supremo nas redes sociais.
No caso de Lula, Maierovitch afirma que Moro e o governo tentaram dar uma demonstração de força diante de uma crítica política.
"É uma tentativa de mostrar os músculos, usando uma lei mais forte, que dá cadeia", resumiu.
Dias depois da libertação de Lula, Bolsonaro já havia sinalizado a intenção de usar a legislação da ditadura contra o adversário. "Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada. Alguns acham que os pronunciamentos, as falas desse elemento, que por ora está solto, infringem a lei. Agora, nós acionaremos a Justiça quando tivermos mais do que certeza de que ele está nesse discurso para atingir os seus objetivos", afirmou.
Para o jurista Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da FGV Direito São Paulo, enquadrar a oposição na Lei de Segurança Nacional é "uma ofensa à Constituição" e viola direitos fundamentais.
"A Lei de Segurança Nacional não se aplica, em hipótese alguma, ao jogo político democrático. A Constituição assegura o direito à liberdade de expressão, à livre manifestação, desde que pacífica, e à oposição política. Assim, não é possível invocar essa lei para reprimir aqueles que criticam e se opõe ao governo", salientou.
Vilhena avalia que esse tipo de enquadramento legal pode, inclusive, caracterizar uma ilegalidade por parte de Moro e Bolsonaro.
"Ao ameaçar a aplicação da Lei de Segurança Nacional aos opositores, as autoridades correm o sério risco de estarem comentendo crime de responsabilidade, ao ameaçar os direitos fundamentais e a própria democracia", concluiu.
Outro mecanismo legal da ditadura já mereceu elogios de aliados do presidente Jair Bolsonaro. Em outubro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, defendeu em entrevista à jornalista Leda Nagle a criação de "um novo AI-5 (Ato Institucional nº 5)" em resposta à esquerda, caso as manifestações que ocorriam em vizinhos como o Chile e a Colômbia chegassem ao Brasil. No mês seguinte, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu declaração de teor semelhante durante uma viagem aos Estados Unidos.
O AI-5 foi imposto pelo presidente Costa e Silva em dezembro de 1968. A medida radicalizou a ditadura militar, fechando o Congresso, cassando o direito ao habeas corpus de presos políticos e estabelecendo censura prévia a atividades artísticas e publicações jornalísticas. Também passou a só permitir reuniões públicas caso fossem autorizadas pela polícia e ampliou o poder de o regime cassar mandatos e direitos políticos de cidadãos.
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