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Haia: Queixa não deve sair de fase preliminar, mas pode desgastar Bolsonaro

Lucas Borges Teixeira

Do UOL, em São Paulo

28/07/2020 04h00Atualizada em 28/07/2020 09h11

Resumo da notícia

  • Para juristas e especialistas em Direito Internacional, as ações do governo não podem ser tipificadas como genocídio ou crime contra a humanidade
  • Embora a gestão do governo possa ser questionada e má avaliada, elas não se enquadram nas ações do tribunal e não devem seguir para julgamento
  • Desgaste político, contudo, coloca presidente em evidência e pode desgastar sua imagem

As denúncias contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Tribunal Penal Internacional, em Haia, não devem sair do nível preliminar. Para juristas e especialistas em Direito Internacional, as ações do governo não podem ser tipificadas como genocídio ou crime contra a humanidade.

No último domingo (26), uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil denunciou o presidente por "crime contra a humanidade durante sua gestão frente à pandemia, ao adotar ações negligentes e irresponsáveis, que contribuíram para as mais de 80 mil mortes pela doença no país".

Esta não é a primeira queixa prestada contra o presidente, denunciado no ano passado na corte internacional por incitar "ataques contra índios". Para os juristas, embora a gestão do governo possa ser questionada e mal avaliada, elas não se enquadram nas ações do tribunal e não devem seguir para julgamento.

Denúncias não devem passar de fase preliminar

"Pessoalmente, eu entendo que tanto essa queixa quanto as anteriores não vão passar nem pelo exame preliminar, vão ser barradas no início", afirma Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional e pesquisadora sênior da Escola de Direito da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).

Para ela, tanto a conduta do governo Bolsonaro em relação à pandemia de covid-19, objeto da última queixa, quanto o pedido em relação ao povo indígena, não entram nas tipificações estabelecidas pelo Estatuto de Roma, pelo qual o Tribunal se norteia.

"Pode-se dizer que houve uma política desastrosa de gestão de uma pandemia e, por conta dessa gestão desastrosa, aumentou o número de pessoas atingidas, mas isso não está configurado em crime de genocídio ou contra a humanidade", afirma Steiner.

"São violações graves de direitos humanos, competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas, a meu ver, não se praticou uma conduta típica [de genocídio ou crime contra a humanidade]."

Clayton Pegoraro, professor de Direito Internacional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também avalia que as denúncias feitas contra o presidente não se sustentam para seguir na Corte.

"Não vejo como crime contra a humanidade. Pode-se falar que ele [Bolsonaro] não fez o máximo que poderia [ter feito] para combater a pandemia, que não fiscalizou para aonde vai o dinheiro, ou que poderia ter sido melhor. Mas isso é outra coisa, uma questão interna", afirma Pegoraro.

Segundo ele, ao analisar o Estatuto de Roma, não há "sentido que criminalize" as ações do governo em meio à pandemia, "por mais que se discorde de sua eficiência".

Nem genocídio nem crime contra a humanidade

"A omissão do governo brasileiro caracteriza crime contra a humanidade: genocídio", diz o texto enviado ao Tribunal. Steiner, que diz não ter lido a peça, afirma que pode haver uma confusão quanto aos conceitos de genocídio e crime contra humanidade — muitas vezes confundidos sobre seus significados e entre si. O Estatuto de Roma define da seguinte maneira:

  • Genocídio: ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso
  • Crime contra a humanidade: ato cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil

"Está pacificado que não precisa ser uma ação militar armada para configurar um dos dois, mas precisa ter violência ou coação contra a população. Com genocídio, por exemplo, precisaria indicar que o governo pretende exterminar todos os 210 milhões de brasileiros, o que não parece ser o caso", afirma Steiner.

"Vai depender da visão do especialista em direito penal. Para mim, é uma violação massiva contra direitos humanos, mas não se praticou conduta típica [desses crimes], que é o que o Tribunal vai analisar", pondera a magistrada.

Entenda o processo em Haia

A avaliação dos juristas é que a queixa não deve passar nem da primeira parte. Mesmo se seguisse, ainda haveria um longo caminho para que o presidente fosse a julgamento em Haia, como clamaram as redes sociais. Veja as etapas do processo:

Triagem

O Tribunal Internacional recebe, em média, de 800 a mil queixas por ano, que podem vir de qualquer pessoa grupo ou organização ao redor do mundo. Por isso, é preciso fazer uma triagem inicial que avalia se o processo deve ou não estar ali. Queixas contra nações que não são membro, como os Estados Unidos, são descartadas liminarmente.

As denúncias contra Bolsonaro ainda estão nessa fase, sem nem ter sido avaliadas por juízes — e, para os especialistas, dali não devem seguir.

Exame Preliminar

Os processos que couberem ao Tribunal são examinados pela promotoria no chamado "Exame Preliminar", onde se avalia quatro aspectos: jurisdição (tem base jurídica?), complementariedade (o Estado não pode ou não quis investigar o caso?), gravidade (é grave o suficiente?) e interesse jurídico (vai de encontro aos interesses da Justiça?).

"Só se essa queixa passar por todas essas fases, vai a uma Câmara composta por três juízes que avaliam ou não se deve ser iniciada uma investigação", explica Steiner.

Processo investigatório

É o equivalente ao inquérito policial, quando a promotoria investiga a denúncia e reúne as possíveis provas. Dura de um a dois anos. "Depois de terminada a investigação, ele volta à Sala Preliminar para dar início ao equivalente à ação penal", explica Steiner.

Julgamento

O julgamento é iniciado diante da Corte Internacional, onde há apresentação de provas, testemunhas e o direito à ampla defesa por parte do réu. Neste caso, o chefe de Estado é convidado a depor.

Bolsonaro terá de ir a Haia?

Só se o processo chegar ao último estágio, o que não parece provável. Neste caso, como o Brasil é signatário do Tribunal, o presidente é obrigado a ir, e o Brasil, obrigado a entregá-lo caso seja condenado.

Se o chefe de Estado se recusa a ir, o país pode sofrer diversas sanções internacionais e o líder, restrito a viagens a países que não são signatários de Haia. Visto que, caso pouse em um deles, deverá ser preso.

"O Tribunal depende de cooperação. Ele não tem polícia, não vai invadir o país. Mas, como houve com o [Omar] al-Bashir, do Sudão, ele fica praticamente restrito a seu país", afirma a magistrada.

Processo arma oposição e reforça base, diz analista

Embora seja improvável que o processo dê tenha sequência jurídica, para o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, este é mais um desgaste político para o presidente Bolsonaro, que o coloca em evidência "para o bem e para o mal".

"É sempre algo que chega a desgastar. Seria muito melhor ter um presidente de qualquer país sendo citado por uma revista de impacto como exemplo de bom gestor da crise. O contrário também é verdadeiro, é muito ruim ter uma queixa internacional", avalia o analista.

O impacto político-eleitoral disso, por sua vez, é difícil de ser mensurado por enquanto. Segundo ele, processo segue a cartilha de outras tantas disputas políticas do governo Bolsonaro: dá mais munição para a oposição e ajuda a reforçar o discurso da sua base.

"Para o Bolsonaro e o bolsonarismo [a queixa] não vai fazer diferença nenhuma. Só o coloca em evidência e reforça o discurso 'antiestablishment'. Já para a oposição é mais um artifício [de crítica]. Mesmo que as pessoas não dominem o que significa, estão divulgando", afirma Prando.

"Se isso terá efeito para [a reeleição em] 2022 ou na sua imagem, é cedo para dizer, há outras questões mais relevantes, como a economia. De uma forma ou de outra, essa disputa, como sempre, o mantém em evidência", conclui o cientista político.