Com derrota ampla, Crivella deixará governo sem 'cuidar das pessoas'
Em quatro anos como prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos) —derrotado ontem por Eduardo Paes (DEM)— acumulou uma série de desgastes políticos, com dois pedidos de impeachment submetidos a plenário e rejeitados pela Câmara Municipal, e contestações quanto à atuação do poder municipal e execução de políticas públicas em áreas como saúde e educação.
Crivella foi duramente criticado por erros no processo de restruturação do programa Clínicas da Família, que tem foco na atenção primária. Com a derrota, o republicano —que obteve a menor votação da história da capital em um 2º turno— ficará sem cargo público pela primeira vez em 18 anos.
Até então, o pior desempenho de um candidato no 2º turno na cidade havia sido de Sérgio Cabral, que teve a preferência de 1.055.993 eleitores em 1996, quando foi derrotado por Luiz Paulo Conde à Prefeitura do Rio. Crivella recebeu ontem 913.700 votos —rejeição alta e abstenção recorde ajudam a explicar o desempenho.
Problemas na área da saúde, expostos em reportagens e relatórios de instituições como a Defensoria Pública, tornaram-se o ponto de maior desgaste da gestão Crivella —eleito em 2016 com a promessa de "cuidar das pessoas".
O slogan chegou a sair da campanha eleitoral para se tornar um bordão oficial junto ao brasão da prefeitura, porém a Justiça vetou o intento ao decidir que isso desrespeitava o princípio da impessoalidade.
Saúde, o teto de vidro da gestão
Diferentemente do que havia prometido em 2016, Crivella promoveu cortes nas equipes envolvidas com as estratégias de saúde da família e remanejou unidades —isto é, houve moradores que deixaram de ter assistência perto de casa.
O prefeito se justificou com acusações contra o antecessor Eduardo Paes, a quem culpou por supostamente ter acelerado a implementação de Clínicas da Família de forma desordenada. Dessa forma, o poder público precisaria realizar uma restruturação.
Dados do Painel de Indicadores de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, mostram que o número de equipes mobilizadas com saúde da família passou de 799, em 2016, para 774, neste ano —os grupos não têm um número específico de funcionários e podem envolver vários agentes.
A estimativa de população atendida pelo conjunto de estratégias de saúde da família passou de 51,80% para 47,56%, segundo indica o painel. Já a população com acesso à atenção básica passou de 64,26% para 59,16%.
A saúde acabou sendo um dos pontos mais explorados por Paes, cuja gestão foi responsável por criar no Rio o programa das Clínicas da Família.
Crivella também descumpriu outras promessas de campanha. Uma delas foi a não-contratação de especialistas para as unidades de atenção básica —que contam apenas com médicos generalistas.
Crivella se elegeu com o discurso de que reduziria —ou até mesmo acabaria— com as filas nos hospitais e unidades de saúde.
Segundo a Agência Lupa, o tempo médio de espera nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e nos hospitais de emergência da cidade aumentou nos últimos quatro anos. Dados da secretaria indicam que um paciente esperava 30 minutos para ser atendido em 2017. Já em março passado, a demora chegou a 35 minutos.
Neste ano, com o governo mal avaliado, grupos de apoiadores chegaram a fazer mutirões para monitorar e intimidar o trabalho da imprensa na porta de hospitais. A ação era coordenada por meio de grupos de WhatsApp. O caso, que ficou conhecido como "Guardiões do Crivella", ainda está sob investigação.
Durante a campanha, Crivella rebateu as críticas relacionadas às políticas de saúde e enalteceu a construção de hospital de campanha destinado a pacientes com covid-19.
Situação fiscal
O mandato de Crivella, que acabará oficialmente em 31 de dezembro, também ficou marcado pelo congelamento do Tesouro no fim de 2019 —medida que suspendeu o 13º salário do funcionalismo e o pagamento de fornecedores.
O próprio Crivella admitiu em algumas oportunidades a gravidade da situação fiscal, sempre com o argumento de que teria herdado da gestão anterior um rombo nas contas públicas. Ele viajou a Brasília mais de uma vez para pedir ajuda ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ao ministro da Economia, Paulo Guedes.
De acordo com o TCM (Tribunal de Contas do Município), o Rio fechou 2019 com um déficit recorde de R$ 4 bilhões e gastou mais do que devia com pagamento de pessoal (despesas superiores a 54% da receita).
Com os impactos econômicos causados pela pandemia do coronavírus, há expectativa de que a prefeitura acabe 2020 com um endividamento ainda maior.
Pedágio na Linha Amarela
Sem uma grande marca para apresentar como o legado de sua gestão, Crivella buscou fazer do cancelamento do contrato de concessão da Linha Amarela, importante via expressa da capital, uma das bandeiras de sua empreitada eleitoral.
À época da cisão, em 2019, o prefeito usou retroescavadeiras e mandou derrubar as cancelas que impediam a passagem de veículos sem o pagamento de pedágio —imagens exibidas nas propagandas do candidato.
Durante a campanha, Crivella visitou a Linha Amarela, distribuiu panfletos no local e prometeu cobrar uma tarifa de R$ 4,30 em apenas um dos sentidos. Antes do rompimento do acordo entre a prefeitura e a concessionária Lamsa, o valor do pedágio era de R$ 7,50 na ida e na volta.
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