Sob Bolsonaro, orçamento 'paralelo' quadruplica e supera Dilma e Temer
Durante o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a média anual de emendas de relator aprovadas pelo Congresso é quatro vezes maior que a observada na gestão de Michel Temer (MDB) e cinco vezes maior que na era Dilma Rousseff (PT). Por envolver um controle de emendas que não aparece nos sites de transparência do governo e do Congresso, mas apenas em trocas de ofícios entre ministérios e parlamentares, o caso ficou conhecido como "orçamento paralelo". A compra de muitas máquinas agrícolas com as verbas ainda fez o sistema ser apelidado de "tratoraço".
Levantamento da Consultoria de Orçamento da Câmara, em resposta a pedido do UOL por meio da Lei de Acesso à Informação, mostra que na gestão do atual presidente os congressistas apresentaram R$ 20,7 bilhões em emendas de relator por ano em média, já considerada a inflação no período. No governo Temer, de 2016 a 2018, foram R$ 4,8 bilhões em média. Na gestão de Dilma, entre 2011 e 2015, foram R$ 3,8 bilhões em média por ano.
O mecanismo é utilizado para distribuir verba entre parlamentares, mas o nome do político só aparece em ofícios trocados entre o Legislativo e a Esplanada, um controle paralelo aos portais de transparência do governo e à lei orçamentária.
Emendas dão salto na gestão Bolsonaro
Sem considerar a inflação, as emendas de relator no governo de Dilma variaram de R$ 300 milhões a R$ 5,9 bilhões a cada ano. Com Temer, a variação foi de R$ 1,5 bilhão a R$ 5,5 bilhões. No governo Bolsonaro, elas deram um salto: saíram de R$ 1,9 bilhão no primeiro ano de governo, para R$ 28 bilhões em 2020, e chegaram a R$ 29 bilhões em 2021.
O levantamento da consultoria considera as emendas apresentadas, não as efetivamente pagas ou empenhadas para pagamento, a fim de poder comparar os anos diferentes. Em 2021, por exemplo, durante a execução orçamentária, o governo federal anunciou um corte de R$ 10 bilhões no montante de R$ 29 bilhões em emendas de relator.
Metade das emendas foi para aplicação direta
Os valores revelados pela Consultoria de Orçamento da Câmara ao UOL, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), se referem às emendas de relator entre 2010, o último ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e 2021. Em valores históricos, o montante soma R$ 85,7 bilhões, mais da metade concentrada no governo de Jair Bolsonaro.
Sem considerar as variações da inflação, a pesquisa mostra que, entre 2010 e 2021, praticamente metade das emendas foram destinadas a transferência para estados e prefeituras, inclusive os fundos setoriais, como os de saúde e educação. Foram R$ 40 milhões para prefeituras e estados. Houve R$ 45 milhões para aplicação direta do Executivo.
Dinheiro para "tratoraço" supera saúde
No período de 11 anos, alguns ministérios mudam de nome. Por isso, a pasta que mais recebeu emendas foi o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), hoje comandada por Rogério Marinho (PSDB). Ela abarcou os antigos ministérios da Integração e das Cidades.
O MDR teve R$ 22,6 bilhões dos R$ 85,7 bilhões no período, ou 26% do total. São valores que não consideram a inflação no ao longo dos anos. Em segundo lugar, ficou o Ministério da Saúde, com R$ 20,9 bilhões. Em terceiro, o da Educação, com R$ 8,2 bilhões.
A pasta da Defesa aparece com R$ 6,3 bilhões. O Ministério da Agricultura, que incluiu as extintas pastas da Pesca e do Desenvolvimento Agrário, está em quinto lugar: recebeu R$ 5,5 bilhões.
Os projetos que mais receberam previsão de recursos foram aqueles marcados como de "apoio a desenvolvimento sustentável local integrado", uma nomenclatura muito usada no MDR.
A compra de tratores e máquinas agrícolas é classificada com esse termo, que recebeu R$ 7,6 bilhões de 2010 para cá.
O dinheiro é maior do que os repasses para as ações ligadas à saúde, quando estas são observadas isoladamente.
O incremento temporário ao custeio de hospitais e ambulatórios, verba influenciada pela pandemia de coronavírus, recebeu R$ 5,3 bilhões em emendas no período. Ficou em segundo lugar, segundo o estudo da Consultoria de Orçamento. Já o aumento provisório para atenção primária à saúde recebeu outros R$ 3,7 bilhões.
Os valores pagos em emendas para compra de tratores e máquinas agrícolas estavam acima da cartilha de preços de referência do próprio governo, elaborada em 2019, de acordo com o jornal O Estado de S.Paulo. Mas o MDR afirma que esses valores são apenas uma sugestão, e que as variações do dólar e a influência da pandemia na economia mudaram os preços dos equipamentos.
Por se tratar de um período histórico longo, a Consultoria de Orçamento considerou as emendas de relator que realmente poderiam ser comparadas com aquelas usadas atualmente, chamadas de RP-9, sigla para "resultado primário 9". Para isso, os técnicos também excluíram aquelas que não tinham a ver com o tema, como as emendas de ajustes técnicos, de reserva de contingência, de iniciativa popular, usadas em 2012, as criadas para atender novos parlamentares em 2015 e aquelas para cumprir a "regra de ouro" do equilíbrio das despesas.
Padrinho de "emenda" segue sem transparência
As emendas individuais, de bancada ou de comissão aparecem nos portais de transparência com o nome do autor de cada uma. Já as de relator, não.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, o UOL pediu a 12 ministérios uma lista de gastos do governo com emendas de relator revelando o nome do deputado ou senador "padrinho" das verbas a serem distribuídas em estados e prefeituras. Nenhum deles revelou as informações.
Nove ministérios informaram planilhas de gastos, embora sem o nome do político que indica a verba. Dois pediram que o UOL consultasse sites de transparência, mas essa informação não consta neles.
Por fim, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), que concentra as emendas de relator no governo, informou que revelar a lista de gastos discriminado os políticos seria uma tarefa que "exige trabalho adicional". Por isso, não prestou as informações.
Modo de governar
O aumento do volume de emendas mostra o modo como Bolsonaro lida com o Parlamento, segundo José Álvaro Moisés, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo).
"Muito provavelmente o governo não tinha clareza dos seus próprios rumos", afirmou ele. "Então não tinha clareza do que propor aos partidos para obter apoio e, ao mesmo tempo, adotou posição populista, falseada, de afirmar que a tendência de participação política generalizada era negativa."
"Presidencialismo de coalizão"
O professor aposentado da UnB (Universidade de Brasília) Paulo Kramer atuou na campanha de Bolsonaro em 2018. Ele disse que, da era Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nos anos 90, passando por PT e MDB, até a gestão Bolsonaro, as emendas de relator servem para atender os parlamentares mais fiéis ao Executivo.
"Talvez excetuando esse ponto fora da curva, que foi o primeiro ano do Bolsonaro, sem presidencialismo de coalizão, a tendência é essa", afirmou Kramer. "O relator faz uma ponte entre o Executivo e o Legislativo."
O líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), afirmou que a elevação das emendas tem a ver com o aumento do peso do Legislativo na definição do orçamento. Isso incluiria também as emendas individuais e o orçamento impositivo.
Você vai ter um aumento relativamente grande em relação às emendas individuais e de bancada"
Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso
"Estou dizendo o que eu sinto: acredito que um dos fatores é esse", continuou.
Reservadamente, um aliado importante do governo no Congresso disse à reportagem que os números da Consultoria da Câmara mostram que é visível a mudança de acordo político para a votação do orçamento.
Dividendos políticos concentrados
Vice-líder do governo no Congresso durante governos do PT, o ex-deputado Gilmar Machado (PT-MG) afirmou que as emendas de relator eram usadas para atender os aliados dos petistas. "O [José] Sarney ligava, meu querido, não tinha relator que não atendia", contou ao UOL. "A Roseana [Sarney] tinha um peso enorme no governo. O Sarney, quando ligava... o Renan [Calheiros]... tinham uma força grande", exemplificou.
A diferença, segundo Machado, é que, na gestão de Bolsonaro, só poucos parlamentares usufruem dos benefícios políticos das emendas de relator distribuídas. Antigamente, as bancadas estaduais faziam reuniões para dividir esses recursos nos projetos considerados prioritários. "A bancada participava. Os parlamentares viam o resultado no seu estado, com a participação deles. Hoje, eles não veem."
Lá em Goiás, tínhamos deputado do PT, às vezes, recebendo menos que a [senadora] Lúcia Vânia e o [então senador Ronaldo] Caiado. Mas, nas obras em Goiás, eles faziam parte. Eles divulgavam como trabalho deles porque foi uma decisão da bancada"
Gilmar Machado, ex-deputado
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