Auditor relata alteração de arquivo, e cúpula da CPI vê crime de Bolsonaro
O auditor do TCU (Tribunal de Contas da União) Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, apontado como autor de um estudo falso sobre mortes na pandemia, afirmou hoje na CPI da Covid que o documento elaborado por ele foi alterado após ser encaminhado ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Em 7 de junho, Bolsonaro citou o suposto estudo para afirmar a apoiadores que metade das mortes de covid em 2020 teria ocorrido, na verdade, em função de outras doenças. O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), e senadores de oposição veem crime por parte de Bolsonaro.
Randolfe declarou, após a reunião, que "os indícios levam a crer que a falsificação [do documento] aconteceu ou na Presidência da República ou por parte do presidente da República."
Na versão de Alexandre Marques, ele próprio encaminhou o arquivo —um esboço de relatório— a seu pai, o coronel da reserva Ricardo Silva Marques, em 6 de junho. Este, então, repassou o mesmo arquivo ao presidente por meio do WhatsApp.
"[O material foi utilizado] Indevidamente pelo fato de se atribuir ao Tribunal de Contas da União um arquivo de duas páginas não conclusivo que não era um documento oficial do tribunal", afirmou.
Marques explicou que o pai foi contemporâneo de Bolsonaro na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), no Rio de Janeiro, e trabalhou com o capitão reformado, hoje presidente da República, nas fileiras do Exército. Esse seria o contexto de proximidade entre os dois.
Em menos de 24 horas, Bolsonaro usou o estudo, como se fosse verdadeiro do TCU, para dizer a apoiadores que metade das mortes de covid em 2020 não foi causada pela doença, mas, sim, por outros motivos.
O relatório, no entanto, era "preliminar" e utilizava dados que, de acordo com o próprio TCU e com o autor do material, não permitem chegar a tal conclusão. O tribunal confirmou posteriormente que não se tratava de um documento oficial e negou a veracidade do conteúdo.
"Produzi um arquivo em Word com algumas informações públicas, mas não era conclusivo esse arquivo. Como eu falei, ele foi feito para gerar uma discussão dentro da equipe de auditoria. Não havia uma conclusão nesse sentido", afirmou Marques.
O depoente negou ter produzido o material para favorecer deliberadamente o presidente Bolsonaro, negou ter "relação" com o governante e culpou o pai por compartilhar indevidamente os dados com o chefe do Executivo federal.
Vice da CPI e oposição veem crime de Bolsonaro
Senadores da oposição sustentam a ideia de que o arquivo produzido em Word —e compartilhado originalmente sem edição— teria sido "manipulado" pelo Palácio do Planalto, de modo a supostamente corroborar argumentos defendidos pelo presidente em Bolsonaro em suas lives.
Para a cúpula da CPI, o presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes ao divulgar o documento como se fosse oficial do TCU. Randolfe Rodrigues disse que Bolsonaro incorreu no "crime contra a fé pública, constante no art. 297 do Código Penal, que diz: "Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro".
Ele afirmou que, se o agente é funcionário público e comete crime prevalecendo-se do cargo, a pena é aumentada —segundo ele, indo "até nove anos e mais multa". Randolfe citou ainda que "não está caracterizado o tipo penal pelo depoimento do senhor Alexandre, mas essa prática se equipara ao crime também constante do art. 212 de vilipêndio a cadáver".
"Tem um crime maior que todos esses aí, senhor presidente: é a memória dos brasileiros, é o luto das famílias. Esse é o maior dos crimes. Não há pena que possa fazer a purgação de um crime dessa natureza", disse.
Na avaliação da líder da bancada feminina do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), "pouco importa" se Bolsonaro fez o documento ou mandou fazê-lo. "Na realidade, ele tornou público um documento sabidamente manipulado, falsificado. Isso é crime comum e crime de responsabilidade."
Rogério Carvalho (PT-SE) afirmou que Bolsonaro "promoveu e praticou o crime de propagação da epidemia, cometeu o crime de charlatanismo, de curandeirismo" e esperar que constem no relatório a ser apresentado pela CPI.
O senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) afirmou que "já houve, por parte do presidente, o reconhecimento de que fez uma referência, fez uma citação sem o dever de cautela, sem certificar realmente se se tratava ou não de um precedente do Tribunal de Contas da União". Ele ainda disse que "os acusadores se antecipam para tentar forjar prova onde não tem prova".
Alexandre Marques disse hoje não ter visto o texto que o presidente da República apresentou. "Eu recebi, via WhatsApp, um arquivo em PDF que viralizou, e nesse arquivo em PDF havia uns destaques grifados em amarelo e a inscrição Tribunal de Contas da União na parte superior", afirmou hoje.
O auditor também informou aos senadores que a versão original do arquivo, enviada ao pai em 6 de junho, não possuía a identificação do TCU no cabeçalho, tampouco trechos grifados em amarelo —tal como consta em PDF que viralizou entre apoiadores do presidente Bolsonaro nas redes sociais.
Indagado pelos membros da CPI se sabia as circunstâncias e a origem de uma possível adulteração, Marques esclareceu que, de acordo com o pai, o arquivo havia sido compartilhado em seu formato original.
"O meu pai me falou que repassou o mesmo arquivo em Word. Agora, onde foi feita essa alteração, realmente não tenho como afirmar."
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) chamou Alexandre Marques de "covarde" por avaliar que o auditor estava transferindo a responsabilidade do compartilhamento indevido do documento ao pai.
Questionado pelos senadores, Marques disse que não tinha o costume de repassar documentos do trabalho ao pai, mas que este caso teria ocorrido em meio a conversas informais com ele.
Contarato lembrou que um servidor público não pode compartilhar arquivos elaborados no trabalho e considerou que Marques enviou o documento ao pai de forma proposital apostando que ele transmitiria o conteúdo a Bolsonaro.
Marques defendeu não saber que o pai compartilharia o documento ao presidente, mas também não o advertiu contra o compartilhamento de forma expressa. Segundo o auditor, o pai teria justificado acreditar que o documento era oficial do TCU e de conhecimento público após o ato.
"Fiquei indignado com esse compartilhamento indevido", argumentou na CPI. "Disse que era um equívoco do presidente atribuir esse arquivo ao TCU."
Após a divulgação do documento por Bolsonaro como se fosse do TCU, o pai de Marques teria falado com o presidente que o documento não era oficial do tribunal, mas o auditor alegou não saber o que o mandatário respondeu.
Randolfe informou que a defesa de Alexandre Marques vai encaminhar à CPI tanto o momento do compartilhamento do suposto estudo para o pai quanto o compartilhamento do documento pelo pai a Bolsonaro.
Após o término da sessão de hoje, Randolfe disse ser desnecessário chamar o pai de Alexandre Marques a depor, pois os dados fornecidos já devem colaborar com a CPI e ele não teria muito o que acrescentar presencialmente.
Durante a audiência, os parlamentares aprovaram um requerimento com a finalidade de enviar questionamentos ao Ministério da Saúde sobre a necessidade ou não de aplicação de uma terceira dose, de reforço vacinal, na população. O tema está em estudo.
'Relatório paralelo'
O estudo falso que é objeto do depoimento de hoje na CPI indicava uma suposta "supernotificação" e sustentava a ideia de que metade dos óbitos registrados em 2020 no país seria em decorrência de outros motivos não relacionados ao coronavírus.
A pesquisa feita por Marques deu origem a um "relatório paralelo", segundo investigação feita pela Polícia Federal a pedido do próprio TCU.
Após a repercussão do caso, o órgão de controle desmentiu publicamente o conteúdo de autoria do servidor e o afastou até que seja concluído processo administrativo. Morador de Jundiaí (SP), ele também foi impedido de entrar nas dependências do TCU, em Brasília.
Na sindicância interna do tribunal, Marques declarou que o material teria sido "editado" e que divulgá-lo era uma "irresponsabilidade". As informações foram veiculadas em reportagem da TV Globo.
De acordo com as investigações, o documento foi produzido por Marques de forma clandestina com base em informações coletadas no sistema do TCU, mas que levam a conclusões distorcidas e sem fundamentação.
Bolsonaro afirmou que o tribunal comprovou supernotificação de mortes pela covid-19 para beneficiar governadores interessados em obter mais recursos públicos para combater a pandemia. O TCU desmentiu o presidente no mesmo dia.
Em seu perfil no Facebook, o auditor já publicou vários comentários sobre a pandemia, endossando sobretudo a narrativa de Bolsonaro, como a recomendação do tratamento precoce com medicamentos sem eficácia contra a covid-19.
Em 2020, também nas redes sociais, ele havia externado pensamento cético em relação aos números da doença. No entanto, à época, seu alvo de crítica era a subnotificação de infectados.
Diante da notícia de que o estado de São Paulo passaria a notificar apenas os casos graves da doença, Alexandre escreveu em publicação de 20 de março de 2020: "Com isso, não podemos mais saber a real taxa de letalidade da doença, pois os casos com sintomatologia leve não são mais notificados".
Marques afirmou hoje ser filiado ao Democratas, mas argumentou nunca ter participado ativamente da vida partidária.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.