Bolsonaro parou demarcações de terras indígenas e fez explodir ações do MPF
Alegando espera pela definição do marco temporal pelo STF (Supremo Tribunal Federal), o governo do presidente Jair Bolsonaro aplicou um freio inédito nos processos de demarcação de terras indígenas e causou uma avalanche de ações do MPF (Ministério Público Federal) na Justiça cobrando atos que avancem nos procedimentos legais.
Levantamento feito a pedido do UOL pela Câmara Temática Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, ligada à PGR (Procuradoria-Geral da Justiça), mostra aumento de 340% no número de ações civis públicas que foram impetradas pelo país contra o governo federal ou a Funai (Fundação Nacional do Índio) visando o início ou conclusão de procedimento de regularização fundiária. De cinco ações em 2020, saltou para 22 neste ano.
Ações contra União e Funai:
- 2016 - 5
- 2017 - 6
- 2018 - 9
- 2019 - 6
- 2020 - 5
- 2021 - 22
A ideia de parar os processos não surpreende, já que foi uma das promessas de campanha do presidente —assim como fez com a reforma agrária e titulação de terras quilombolas.
Ao UOL, os procuradores da câmara da PGR se pronunciaram coletivamente e afirmaram que "atravessamos o pior momento no país no que diz respeito às demarcações de terras indígenas".
Verifica-se que a promessa de campanha do governo Bolsonaro, de que não demarcaria nenhum cm (centímetro) a mais de terra indígena, vem sendo colocada em prática em frontal violação ao art. 231 da Constituição da República.
Procuradores da câmara temática da PGR
Segundo eles, desde janeiro de 2019 não houve terra indígena homologada ou declarada, assim como não foi produzido nenhum relatório circunstanciado de identificação e delimitação aprovado pela presidência da Funai.
"Esse é o pior cenário considerando os últimos oito governos. Pelo contrário, o Ministério da Justiça devolveu para a Funai diversos processos demarcatórios prontos para publicação da Portaria Declaratória, para que fossem reavaliados sob a ótica do 'marco temporal'", alegam.
Para os procuradores, o que está em curso não é apenas a paralisação de atividades administrativas de reconhecimento de terras, mas há também um "andar para trás no que tange às demarcações".
"Temos anulações de portarias declaratórias, retrocessos no trâmite de procedimentos administrativos de demarcação e a iminente caducidade de portarias de interdição e restrição de uso para monitoramento e proteção de povos indígenas isolados", denunciam.
Eles alegam, por fim, que uma das formas de reduzir a lentidão seria intermediar a realização de acordos —extrajudiciais ou judiciais— entre a Funai, Associação Brasileira de Antropologia e universidades para a indicação de antropólogos que possam presidir os grupos de trabalho —responsáveis pela delimitação de terras indígenas—, tendo em vista o reduzido quadro de antropólogos da Funai.
"Ademais, a esperada derrubada da 'tese do marco temporal' pelo STF certamente será um fator de desobstaculização dos processos judiciais em curso que tratam de demarcação de terras indígenas", alega.
Processos parados
O impacto dessa paralisação também é vista na prática por entidades de luta indígena. O ISA (Instituto Socioambiental) acompanha todos os atos publicados no Diário Oficial.
Este ano, apenas uma publicação foi feita, e mesmo assim atendendo a ordem judicial: em 20 de julho a Funai criou um grupo técnico para realizar estudos da área reivindicada pela etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe na Fazenda Conjunto São Francisco, no município de Ribeirão do Largo (BA).
"Desde 2016 o que a gente vê é que mais da metade das terras indígenas ou criação de grupos de trabalho aconteceu por força de mecanismos externos à Funai, maioria atendendo ações civis", afirma Tiago Moreira, antropólogo e pesquisador do programa de monitoramento de áreas protegidas do ISA.
Quando a gente entra no governo Bolsonaro, todas as áreas que tiveram processo de reconhecimento iniciado, ou tiveram alguma etapa dessa desse processo, por força dessas ações
Tiago Moreira, antropólogo
Moreira cita que, ainda nesse período a partir de 2016, muitas das publicações se referem à criação de grupos e compra de áreas para assentamento de populações indígenas em consequência de PBAs (planos básicos ambientais) —ou seja, muitos são processos de realocação devido à retirada deles de locais para obras, por exemplo.
Os 7 passos para demarcação de uma terra indígena:
- Estudos de identificação - A Funai nomeia um antropólogo para elaborar estudo de identificação com um grupo de trabalho e apresentar relatório.
- Aprovação da Funai - Aprovado pelo presidente da Funai, em 15 dias deve o resumo do relatório deve ser publicado em Diário Oficial.
- Contestações - Prazo vai até 90 dias após a publicação do relatório. A Funai tem, então, 60 dias, para elaborar pareceres e encaminhar para o Ministro da Justiça.
- Declarações dos limites da TI - O Ministro da Justiça tem 30 dias para expedir portaria ou prescrever diligências a serem cumpridas.
- Demarcação física - Declarados os limites da área, a Funai promove a sua demarcação, enquanto o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) procederá ao reassentamento de eventuais ocupantes não-índios.
- Homologação - Procedimento submetido ao Presidente da República para homologação por decreto.
- Registro - A terra demarcada e homologada deve ser registrada, em até 30 dias após a homologação, no cartório e na Secretaria de Patrimônio da União.
Fonte: ISA
Denúncia na ONU
A paralisação das remarcações é uma das principais reclamações dos povos indígenas. Em abril, lideranças dos povos Mura, Maraguá, Karipuna, Kanamari, Makuxi e Guarani e Kaiowá denunciaram o governo brasileiro à ONU (Organização das Nações Unidas), durante a 20ª Sessão do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas.
Eles reclamam ainda que houve a intensificação de conflitos territoriais e mortes, invasões em seus territórios e falta de atenção à saúde durante a pandemia de covid-19.
Em junho, o Brasil foi citado pela primeira vez como um caso de risco de genocídio no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por causa de crimes contra populações indígenas.
No meio desse cenário, a discussão sobre a validade ou não do marco temporal ocorre e pode causar ainda mais prejuízos aos indígenas que esperam a conclusão do julgamento.
Segundo Tiago Moreira, não há como saber exatamente o tamanho do problema caso o STF confirme o marco temporal em 1988.
"É difícil contabilizar. Nós temos 238 terras indígenas em diferentes etapas do processo administrativo antes da homologação final. Mas há processos que ainda são internos na Funai, demandas de novas áreas. Mas o marco temporal pode afetar, inclusive áreas que já foram homologadas", afirma.
Situação das TIs no Brasil:
- Em identificação : 121
- Identificadas: 43
- Declaradas: 74
- Reservada / Homologada: 487
Funai cita obediência à legislação
Ao UOL, a Funai afirma que "trabalha em restrita obediência à legislação vigente, com absoluto respeito aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública e aos entendimentos jurídicos da AGU (Advocacia-Geral da União)."
"A Funai aguarda uma definição do STF quanto aos efeitos do Parecer Vinculante nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, da Advocacia-Geral da União (AGU), atualmente suspenso por decisão do Ministro Edson Fachin, bem como do Recurso Extraordinário nº. 1017365. Tal indefinição deixa um vácuo regulamentar que resulta em insegurança jurídica", diz.
A fundação alegou ainda que, devido à pandemia de covid-19, foram editadas duas portarias (uma em 2020 e outra de prorrogação em 2021) que restringe o contato entre agentes da Funai e indígenas, "o que impactou o planejamento das etapas de trabalho de campo do órgão".
"O órgão reforça que as medidas restritivas diante da pandemia são essenciais ao enfrentamento da covid-19 entre os indígenas, posto que evita o contato de possíveis contaminados com as comunidades indígenas", finaliza.
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