Sistema de inteligência do governo monitora 360 mil pessoas, diz revista
O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) está expandindo um sistema de inteligência capaz de obter informações pessoais de milhões de brasileiros, segundo publicação de hoje da revista Crusoé. Batizado de Córtex, o programa monitora atualmente 360 mil alvos, conforme informações do Ministério da Justiça e Segurança Pública, obtidos pela reportagem de Crusoé via LAI (Lei de Acesso à Informação). O UOL entrou em contato com a pasta a respeito da reportagem e aguarda retorno.
De acordo com a revista, o Córtex foi lançado de forma experimental em 2018 e tem como objetivo interligar câmeras de seguranças instaladas em vias públicas e fazer a leitura automática de placas, para, por exemplo, localizar veículos roubados e criminosos foragidos ou em fuga.
No entanto, segundo a reportagem, com o passar do tempo, "o sistema se transformou em um gigantesco repositório de informações sensíveis sobre todos os cidadãos" — há dados de ao menos 160 órgãos públicos —, e é usado de forma pouco transparente, já que está longe do alcance de instituições cuja função é fiscalizar esse tipo de atividade, como o MP (Ministério Público).
Atualmente, a central do programa, que funciona dentro da Seopi (Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça), recebe imagens de pelo menos 26 mil câmeras de segurança, inclusive a de radares de velocidades.
Também há nos computadores do sistema dados como a base de CPFs da Receita Federal, com informações pessoais de todos os brasileiros registrados, além de dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais do Ministério da Economia), com informações trabalhistas fornecidas pelas empresas ao governo, incluindo salários.
Segundo a reportagem, dados de companhias aéreas também são integradas ao sistema, ou seja, é possível saber em quais datas e para onde alguém viajou.
Na prática, o sistema permite que investigadores que tenham acesso a ele possam descobrir por onde uma pessoa circulou, desde que se saiba o carro usado nos deslocamentos. Eles também conseguem acessar os dados pessoais da pessoa — basta ter o número de CPF ou até o nome dela. O Córtex armazena as informações captadas por um período de dez anos.
Delegado amigo dos Bolsonaro cuida do programa
O Córtex está sob responsabilidade do delegado Alfredo Carrijo, atual secretário da Seopi. Segundo a revista, ele faz parte do círculo íntimo da família Bolsonaro e trabalhou na segurança pessoal do presidente entre as eleições de 2018 e a posse.
A Seopi é a área que produziu dossiês contra funcionários públicos considerados opositores do governo em 2020.
Segundo a reportagem, para ampliar a base de dados do programa e o número de câmeras, o Ministério da Justiça faz convênios com governos estaduais. Em troca, forças de segurança dos estados também recebem senhas para usar o programa — o nível de acesso às informações depende de uma questão hierárquica. Atualmente, integrantes de polícias militares, civis e guardas municipais têm autorização para usar o Córtex.
Ouvidos sob reserva pela Crusoé, investigadores defendem a utilização do sistema para captura de criminosos, mas admitem que ele permite que informações sobre qualquer pessoa, sem restrições ou justificativas, possam ser pesquisadas. Ou seja, ele pode ser usado indevidamente.
Especialistas fazem alerta
Especialistas ouvidos pela revista alertaram para o risco de o programa ser usado para "fins escusos", inclusive políticos.
"Não há controle nenhum de quem acessa e os motivos pelos quais irá acessar. Isso é o mais grave. Com a quantidade de dados ofertados, poderá abrir brecha para perseguição de opositores e uso para fins pessoais. O próprio crime organizado pode ter acesso à ferramenta. Basta que haja um policial corrupto com acesso. A falta de um sistema para prevenir isso nos deixa bastante expostos", disse à revista Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil. Ele é responsável por um projeto destinado a monitorar o uso de algoritmos e de ferramentas de inteligência artificial pelo governo.
A revista destaca que, por ser uma ferramenta de uso das polícias, o programa deveria ser submetido ao controle do Ministério Público. Além disso, por ser uma ferramenta de inteligência, teria de ser fiscalizada pela CCAI (Comissão de Controle da Atividade de Inteligência) do Congresso Nacional. Não há informações, contudo, de que haja fiscalização em nenhuma dessas frentes.
"Quais são as normas para uso interno? Não se pode mexericar a vida do outro. Tem que ter um procedimento aberto se a informação for usada como prova. Sistemas como esse existem para prevenir crimes e obter provas de ilícitos, mas tem que justificar o porquê. O problema não é o sistema, mas as regras para a operação dele e as regras internas de acesso aos dados", disse a Crusué a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.
Já o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), integrante da CCAI, disse não ter conhecimento de discussões da comissão a respeito do sistema.
Regulamentação
Conforme a reportagem, o Córtex funcionou na maior parte do tempo sem regulamentação. Em 29 de setembro do ano passado, o ministro da Justiça, Anderson Torres, assinou uma portaria estabelecendo as regras de utilização.
"O texto, genérico, define o programa como uma ferramenta destinada a monitorar e buscar informações sobre 'alvos móveis'", destaca um trecho da reportagem. No entanto, não é explicado o que pode ser considerado um "alvo móvel", o que abre caminho para o uso indevido.
Em nota enviada a Crusoé, ao ser questionado sobre o funcionamento do programa, o Ministério da Justiça respondeu que o Córtex é usado "para cadastro de indicadores de produtividade das ações policiais, operações, modelagem de atividades e ações que permitem o acompanhamento de operações em tempo real".
Afirma ainda que, "por ser um sistema de inteligência, ele segue a normatização do Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin, e os órgãos que fornecem informações ao sistema são os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP".
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