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'Quem você quer provocar de batom?': Machismo silencia mulheres na Câmara

Tabata Amaral (PSB-SP) (ao centro) discursa durante pronunciamento da bancada feminina em protesto a falas machistas de Jair Bolsonaro (PL) contra a jornalista Patrícia Campos Mello, em 2020 - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Tabata Amaral (PSB-SP) (ao centro) discursa durante pronunciamento da bancada feminina em protesto a falas machistas de Jair Bolsonaro (PL) contra a jornalista Patrícia Campos Mello, em 2020 Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Igor Mello

Do UOL, no Rio

17/03/2022 04h00

Mesmo com a eleição da maior bancada feminina de sua história, a Câmara dos Deputados segue sendo um ambiente hostil para as mulheres. Deputadas relatam episódios de violência de gênero e veem sua produção legislativa ser prejudicada pelo machismo estrutural existente na Casa, comandada quase exclusivamente por homens.

Nova evidência disso é relevada por estudo exclusivo obtido pelo UOL —o levantamento mostra que, proporcionalmente, as mulheres aprovam menos projetos de lei do que os homens. A conclusão é de pesquisa do OLB (Observatório do Legislativo Brasileiro), projeto mantido pelo Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

De acordo com os dados, em 2020, os deputados aprovaram 31% mais projetos que as colegas —de cada mil propostas apresentadas, eles emplacaram 21 e as deputadas, 16.

Em 2021, essa desigualdade se ampliou, chegando a 100% de diferença —os homens aprovaram seis de cada mil projetos, e as mulheres, três.

O principal motivo para essa diferença está na ocupação quase sempre por homens de cargos estratégicos na estrutura da Câmara, segundo a pesquisadora Joyce Luz, uma das autoras do projeto e professora da Fesp-SP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).

Ela cita, além da Presidência da Casa, o comando das comissões permanentes —responsáveis por dar ou não prosseguimento a projetos de lei de suas áreas temáticas— e as lideranças de bancada.

"Mulheres ocupam pouco as presidências das comissões e são esses presidentes que escolhem como vai ser a tramitação de um projeto de lei ou quem vai relatá-lo", diz a pesquisadora, lembrando que os líderes de bancada negociam a pauta do plenário com o presidente Arthur Lira (PP-AL).

Entre as comissões permanentes, sete das 25 são comandadas por mulheres.

Apesar de pela primeira vez a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), a mais importante da Câmara, ser presidida por uma parlamentar —Bia Kicis (União-DF)— elas costumam presidir apenas colegiados considerados menos importantes pela classe política.

Segundo a pesquisadora, em 2021, houve predominância de projetos do Executivo, o que justifica a redução da proporção de projetos aprovados por parlamentares ante o ano anterior.

'Ciclo vicioso' que exclui mulheres

Joyce diz que o machismo estrutural existente na Câmara cria um "ciclo vicioso" que barra a entrada e permanência de mulheres na política.

Com menos financiamento, as poucas mulheres que conseguem ser eleitas para o Congresso ainda encontram entraves para implementar os projetos que prometeram aos seus eleitores.

Vira um ciclo vicioso. As mulheres não conseguem mostrar para o eleitorado o que elas fazem. E nas próximas eleições, com pouco financiamento de campanha e menos mulheres candidatas, a tendência é que o eleitor vote menos ainda em mulheres."
Joyce Luz, autora do projeto e professora da Fesp-SP

"Imagine o eleitor que resolveu dar um voto de confiança a uma mulher. Ela foi eleita, mas não conseguiu aprovar muitos projetos de lei. Qual vai ser o incentivo para votar nela novamente?", afirma Joyce.

mulheres politica -  -

Rotina de machismo

Deputadas de diferentes partidos, estados e matizes ideológicas ouvidas pelo UOL foram unânimes em apontar constantes episódios de machismo cometidos por parlamentares homens no dia a dia da Câmara.

Eles vão de piadas feitas com o objetivo de constrangê-las até ataques pessoais de cunho misógino.

Em primeiro mandato, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) diz que as atitudes machistas não são exclusividade de parlamentares de direita ou esquerda, governo ou oposição.

"Eu sempre digo com muita consciência: o machismo é a coisa mais suprapartidária que existe na política", critica. "A gente vê [a violência de gênero] nos xingamentos nas redes sociais, nas ameaças que eu já recebi. Isso também é constante no plenário e nas comissões."

Já estive em uma reunião em que um deputado me perguntou: 'Quem você quer provocar de batom vermelho?' E eu era a única mulher na sala, todos riram."
Tabata Amaral, deputada federal PSB-SP

Líder do PSOL na Câmara em 2021, Talíria Petrone (PSOL-RJ) diz que atos machistas ocorrem constantemente quando tenta negociar com o comando da Casa. Ela passou neste ano o cargo para a colega Sâmia Bonfim (PSOL-SP), que hoje é a única deputada a exercer uma liderança de bancada.

"Conseguir tocar a liderança e ser mãe de uma bebê de menos de um ano durante um governo de Bolsonaro foi o maior desafio da minha vida", diz ela.

"O tempo todo você tem que se impor para ser reconhecida como uma liderança. Até eu conseguir ser consultada efetivamente quando os outros líderes [homens] eram, levou um bom tempo. Às vezes, eu dava uma opinião em uma reunião e era ignorada. Um outro líder de esquerda dava a mesma opinião e ela era ouvida, discutida, citada."

Talíria diz que o último episódio desse tipo vivido por ela ocorreu na última quinta-feira (10).

"Fui falar com o [Arthur] Lira e apelar para votar um projeto que estipula o 14 de março como Dia Nacional das Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, por conta da morte da Marielle Franco. Em determinado momento, ele falou, de um jeito muito grosseiro: 'Eu tô ali falando e você fica mexendo a cabecinha', como se eu fosse uma histérica. Ele não falaria assim com um homem."
Talíria Petrone, deputada federal PSOL-RJ

Procurada, a assessoria de imprensa de Lira confirmou o teor do relato de Talíria, mas negou que a fala tenha expressado machismo.

Coordenadora da bancada feminina na Câmara, Celina Leão (PP-DF) diz que as parlamentares têm se articulado para exigir mais espaço nas decisões da Casa —hoje a bancada feminina participa do colégio de líderes, por exemplo— e para reprimir agressões machistas, até mesmo fazendo representações ao Conselho de Ética.

Para ela, o machismo enfrentado pelas parlamentares é fruto da sociedade brasileira.

"Infelizmente é um reflexo da sociedade que nós vivemos. Se pegarmos a Câmara, que é o espaço mais democrático de poder, tem representação até mesmo pessoas que fazem campanha com pilares machistas. São esses deputados que violentam as colegas com falas e piadas, entre aspas, machistas. Temos que vencer isso todos os dias", afirma ela.