Sem ajuda da polícia, negociei com caminhoneiros para liberarem meu ônibus
O que era para ser uma viagem de lazer de São Paulo para o interior de Santa Catarina um dia após o segundo turno das eleições se tornou um drama para cerca de 30 passageiros dentro de um ônibus. Entre eles, crianças e idosos ilhados sem água, comida ou perspectiva de que a viagem tivesse continuidade.
Foram mais de nove horas de bloqueio absoluto, só interrompido após muita negociação com policiais rodoviários federais e com os próprios caminhoneiros bolsonaristas no rodoanel Mário Covas, que dá acesso à rodovia Régis Bittencourt, em Embu das Artes (Grande São Paulo).
A seguir, o relato do repórter Herculano Barreto Filho, que estava dentro do veículo e conta o que viu e viveu:
Após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa com o presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, decidi fazer uma viagem com a esposa e meus dois filhos pequenos para o interior de Santa Catarina, que começou por volta das 19h de ontem. Horas antes, tinha escrito reportagens sobre o paralisação dos caminhoneiros bolsonaristas e tinha noção do que poderia enfrentar pela frente.
Mas a passagem já havia sido comprada e decidi arriscar mesmo assim, pois a ideia era comemorar com o meu pai o aniversário dele de 73 anos.
Como era de se esperar, havia engarrafamento desde o começo da viagem. Mas só paramos em um bloqueio por volta das 23h de ontem. Dormimos ali mesmo, cercados de caminhões por todos os lados.
Quando amanheceu, decidi sair do ônibus para comprar mantimentos em um posto de combustível a cerca de um quilômetro dali, em meio a um grupo de passageiros. Mas mudei de ideia ao ver que havia fumaça de pneus queimados, manifestantes e policiais rodoviários federais logo à frente.
Cerca de 50 caminhoneiros bolsonaristas, muitos deles enrolados em bandeiras do Brasil, pulavam no meio da via, enquanto eram observados à distância pelos agentes, próximos a uma viatura. Fui ao encontro dos policiais para ver se conseguiria ajuda relatando a nossa situação, já que estávamos no único ônibus interestadual no meio de um bloqueio só com caminhões.
"Estou em um ônibus com crianças e idosos. Quem aqui pode nos ajudar a sair do bloqueio?", perguntei.
"Fala com aquele homem ali. Ele que está no comando."
"Quem? Aquele?", perguntei apontando para um outro policial rodoviário federal que conversava com um dos manifestantes.
"Não, aquele", respondeu o agente.
O policial rodoviário federal não se referia ao colega de profissão. Para ele, quem "estava no comando" era o manifestante, um dos líderes dos caminhoneiros. Ali, percebi que quem eu precisaria sensibilizar não eram os agentes, mas os próprios manifestantes bolsonaristas, que agiam como se fossem a autoridade por ali.
Ganhei rapidamente a atenção dele ao relatar que estava em um ônibus interestadual com crianças e idosos. "Não precisa comprar alimentos. Nós temos aqui e podemos levar para vocês", propôs o manifestante.
Mas nem todos pareciam se importar. "Vocês vão nos agradecer depois pelo que estamos fazendo pelo nosso país", disse um deles. "Tem criança aqui? Os meus filhos estão em casa, dormindo", falou outro, que agia como se fosse um dos líderes do movimento. "Vai ficar tudo parado por 72 horas", relatou um terceiro.
Decidi me aproximar e insistir, em um tom amigável, como se estivesse depositando nele a responsabilidade de alguém capaz de solucionar o nosso problema. "Também tem idosos lá. Eles estão com dificuldades", arrisquei. Deu certo.
Ele aceitou ir até o ônibus para verificar se seria possível nos ajudar a sair dali pela contramão com a ajuda dos outros caminhoneiros, que manobrariam para abrir espaço.
Quando chegamos, um idoso desceu e demonstrou dificuldade para se locomover. Disse que usava medicamentos manipulados e que tinha dores nos joelhos. Os caminhoneiros se sensibilizaram e se ofereceram até para comprar remédios em motos, caso necessário.
Uma viatura da PRF (Polícia Rodoviária Federal) foi ao local para verificar se seria possível sairmos ali. Mas havia um impasse. Mais à frente, dois caminhões de grande porte com pneus esvaziados bloqueavam completamente o acesso.
Mesmo que não fosse explícito, havia entre os caminhoneiros uma certa expectativa de que estivéssemos apoiando um movimento que reivindica intervenção militar no país por não aceitar a vitória de Lula nas urnas. E uma atitude hostil contra quem não apoiasse o bolsonarismo.
"Tu é PT?", perguntou um caminhoneiro a uma pessoa em meio ao ato.
"Não, eu estou com o Mito", respondeu, enquanto mostrava uma camisa do Brasil que usava por baixo de um agasalho.
Mais tarde, uma passageira do ônibus de 25 anos, piercing no nariz e com uma manta vermelha me contou que foi ironizada e intimidada ao se aproximar dos manifestantes. Ela fazia parte do grupo que saiu do veículo para comprar mantimentos no começo da manhã. Mas foi ao posto de conveniência, enquanto segui em direção ao ato.
"Vem pro lado de cá. Ninguém vai fazer nada contra você", disse um dos manifestantes, segundo ela.
"Não, moço. Estou só procurando pelo meu amigo", respondeu.
"Ah, então faz o 'L' aí", retrucou o caminhoneiro, de acordo com o relato da jovem.
Houve ao menos dois momentos de tensão.
Um deles ocorreu quando uma passageira estrangeira abordou o policial rodoviário federal de maneira mais incisiva. "Vocês têm que prender eles", cobrou. O agente então se afastou reclamando: "Eu vim ajudar e ela fala isso? Não ajudo mais." Em seguida, ele filmou o ônibus enquanto dizia ajudar os passageiros de um ônibus com crianças e idosos no bloqueio.
O outro momento delicado ocorreu quando um caminhoneiro foi fotografado por uma passageira. "Tá nos fotografando?", questionou, irritado, enquanto já se afastava.
A passageira, no caso, era a minha esposa. Mas agi como se não a conhecesse. "Moça, apaga a foto. Eles estão aqui para nos ajudar. Apagou?", perguntei, próximo a ela, como se estivesse conferindo enquanto ela deletava a imagem.
Apesar de dizer que estavam dispostos a ajudar, os caminhoneiros condicionaram o auxílio a uma saída do nosso ônibus na contramão, porque não queriam esvaziar o bloqueio.
Mas havia um impasse.
O motorista disse que não seria possível, pois havia pouca margem para manobra e precisaria de uma autorização da empresa responsável pelo transporte interestadual de passageiros.
Mas a história do ônibus com crianças e idosos com problemas de saúde já corria entre manifestantes e policiais rodoviários federais. Quando voltei ao local do início do bloqueio, encontrei outra viatura da PRF. Desta vez, com agentes dispostos a ajudar.
Encheram os pneus dos dois caminhões à frente do bloqueio e orientaram os manifestantes a liberar todos os outros veículos até a nossa saída. Mas quem estava atrás, seria obrigado a permanecer no bloqueio.
Voltamos para o ônibus. E, pelas janelas, éramos saudados pelos manifestantes, enquanto dois cinegrafistas registravam a cena.
A história do ônibus com crianças e idosos que motivou a mobilização para que saíssemos de lá também despertou a atenção da imprensa que cobria a paralisação.
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