Topo

Cúpula da Receita pressionou por devolução das joias à Arábia Saudita

Joias apreendidas em Guarulhos - Reprodução
Joias apreendidas em Guarulhos Imagem: Reprodução

Do UOL, em São Paulo

04/03/2023 12h26Atualizada em 05/03/2023 20h13

Antes de enviar um ajudante de ordens em um voo da FAB para tentar recolher no final do ano passado as joias apreendidas pela alfândega de Guarulhos, o governo Jair Bolsonaro usou a cúpula da Receita Federal para pressionar a delegacia do órgão em Guarulhos a devolver um conjunto de joias supostamente destinado à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro para a Arábia Saudita, país de origem. O pedido ocorreu depois que os funcionários da Receita do aeroporto não liberaram os bens retidos sem o pagamento de imposto ou a incorporação ao patrimônio da União.

O caso da apreensão das joias (um colar de diamantes, um par de brincos e um relógio da renomada marca suíça Chopard) foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, na noite desta sexta-feira (3). Michelle negou que as joias fossem destinadas a si e ironizou o caso: "Tenho tudo isso e não estava sabendo?". O ex-presidente disse que não pediu nem recebeu presente.

Segundo duas fontes com conhecimento do caso e que falaram com o UOL sob condição de não terem os nomes divulgados porque não têm autorização para discutir o assunto publicamente, o pedido partiu do então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, ao delegado da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos, Mario de Marco Rodrigues de Sousa.

De Marco, como ele é chamado na Receita, recusou-se a atender o pedido por falta de previsão legal. Do ponto de vista estritamente jurídico, as joias foram apreendidas com um viajante brasileiro e não havia qualquer registro de que se tratasse de um presente do governo saudita ao governo brasileiro.

Procurado, De Marco disse que não faria comentários sobre o assunto. A reportagem não conseguiu contatar Vieira Gomes. Na manhã deste sábado, a reportagem enviou um email com perguntas ao ex-secretário da Receita Federal, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. O UOL vai registrar a manifestação dele quando ela for apresentada.

O conjunto de joias foi apreendido na mochila do servidor Marcos André dos Santos Soeiro, militar que em 26 de outubro de 2021 integrava a comitiva do então ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia), que voltava de viagem oficial à Arábia Saudita.

Segundo a Receita, a existência das joias foi revelada por uma inspeção à mochila de Soeiro após ele ter passado pelo raio-x. O assessor pediu para que o ministro acompanhasse a fiscalização, o que foi atendido pelo supervisor da equipe

Foi nesse momento, segundo o revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo e confirmado pelo UOL junto a fontes, que o ministro teria dito que o conjunto não poderia ser apreendido por se tratar de um presente do governo saudita à primeira-dama Michele Bolsonaro.

A equipe de plantão então redobrou os cuidados. Primeiro, informou ao ministro que as joias seriam inicialmente consideradas propriedade do viajante e, portanto, sujeitas ao pagamento de imposto de tributação.

Para que os bens fossem considerados presente da Arábia Saudita ao governo brasileiro, explicou o supervisor da equipe de plantão, deveria ser formulado um pedido para que as jóias fossem consideradas de propriedade da União, atendendo ao requisito para sair do regime tributário normal. Esse pedido de formalização como bem da União nunca foi feito.

Foi lavrado então o termo de retenção - documento que informa que os bens apreendidos ficariam retidos na Receita Federal até o pagamento dos impostos devidos.

Desviando das cascas de banana da política

Após a tentativa do então ministro de liberar as joias com uma carteirada e a lavratura do termo de retenção, os servidores de Guarulhos também elaboraram e assinaram um relatório descrevendo o episódio, desde a apreensão dos bens até a conversa com Albuquerque e o assessor Soeiro.

A Receita Federal tem quatro equipes que se revezam na fiscalização de passageiros que chegam ao Brasil por Guarulhos. Os times atuam em regime de escala de 24 horas de trabalho por 72 horas de descanso.

Um dos servidores que conversou com a reportagem (não integrante da equipe que realizou a apreensão das joias) disse que é comum que os funcionários da Receita se cerquem de cuidados em casos com potencial repercussão política.

Quando percebem indicativos de pressão para deixar de apreender ou liberar alguma mercadoria sem previsão da lei, os servidores da Receita costumam elaborar relatórios detalhando as apreensões, além do termo de retenção. Pôr tudo no papel é a blindagem dos servidores de carreira contra pressões indevidas.