Comissão de Anistia avalia pedir perdão a japoneses perseguidos no Brasil

O governo brasileiro pode pedir desculpas a todos os imigrantes japoneses e seus descendentes por violações que começaram na ditadura do Estado Novo (1937-1945).

O que aconteceu

Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania analisa nesta quinta-feira (25) um pedido de reparação a japoneses por repressão e perseguição política. Caso seja aprovado, o pedido de perdão formal do Estado não inclui nenhum tipo de compensação monetária.

O requerimento foi feito em 2015 e é assinado pela associação Okinawa-Kenjin do Brasil e pelo produtor audiovisual Mario Jun Okuhara. A associação representa japoneses vindos da província de Okinawa, no sul do Japão. Para eles, essa admissão é fundamental para preencher uma lacuna na história da imigração nipônica no país.

"A gente acha que a história tem que ser contada da forma correta", disse Eiki Shimabukuro, conselheiro da Okinawa-Kenjin. "Ano que vem vai fazer 130 anos do tratado de amizade entre Brasil e Japão e, para ser verdadeiro amigo, tem que ser baseado nos fatos verdadeiros. Não dá para esconder as coisas sujas embaixo do tapete".

Censura e a formação da Shindo-Renmei

Perseguição na Segunda Guerra Mundial. Quando o Brasil declarou apoio aos Aliados na Segunda Guerra Mundial, em 1942, imigrantes de países do Eixo —bloco adversário formado por Alemanha, Itália e Japão— tiveram rádios, livros e documentos confiscados, precisavam de autorização para viajar dentro do país e não podiam formar associações.

Essas restrições teriam contribuído para a formação da Shindo-Renmei ("Liga do Caminho dos Súditos", em português), organização de imigrantes japoneses que não acreditavam na derrota do Japão ao fim da guerra, em 1945. "Esse conflito entre os que achavam que o Japão foi vitorioso e os que sabiam que o Japão fora derrotado se deu exatamente por esse isolamento, essa negação, essa censura à imprensa nipônica naquela época", disse a coordenadora da Comissão Nacional da Verdade Rosa Cardoso em sessão na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2013.

"Os japoneses sem acesso à informação acreditavam que o Japão tinha ganhado a guerra, e os agentes do Estado os submeteram às maiores humilhações.
Rosa Cardoso, coordenadora da Comissão Nacional da Verdade

Um grupo dentro da Shindo-Renmei e matou compatriotas que sabiam da verdade, chamados de "derrotistas". Segundo a investigação da época, 24 pessoas foram assassinadas entre 1946 e 1947. O governo brasileiro interveio na disputa, e indiciou 390 pessoas por envolvimento com a organização. Estima-se, porém, que o grupo tivesse mais de 30 mil membros em todo o estado de São Paulo -o que não quer dizer que todos fossem criminosos. "Tinham os departamentos, como existem em outras associações: o departamento de mulheres, de esporte, de educação", explica Mario Jun Okuhara, um dos autores do requerimento de reparação.

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Para discernir quem era da Shindo-Renmei, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) teria obrigado os imigrantes a fazerem demonstrações anti-patrióticas, como pisar na bandeira do Japão ou no retrato do imperador. "Quem se recusava a pisar na bandeira era preso. Se pisasse na bandeira, ele era solto", disse Mario Jun.

Suspeitos de integrarem a organização, 171 japoneses foram levados para um presídio de presos políticos na Ilha Anchieta, litoral norte de São Paulo.

'Dos 170 presos, uns 130 eram inocentes'

Tokuichi Hidaka na Ilha Anchieta; ele é o terceiro de pé, da esquerda para a direita
Tokuichi Hidaka na Ilha Anchieta; ele é o terceiro de pé, da esquerda para a direita Imagem: Reprodução/Mario Jun Okuhara

A fala é de Tokuichi Hidaka, único sobrevivente dos 171 japoneses presos na Ilha Anchieta. Hoje com 98 anos, ele fez a declaração ao documentário "Yami no Ichinichi - O Crime que abalou a Colônia Japonesa no Brasil", produzido por Mario Jun em 2011.

Presos teriam sofrido tortura e maus-tratos. Uma das histórias que compõem o requerimento de reparação coletiva é a de Fukuo Ikeda, que tinha 20 anos quando foi preso na Ilha Anchieta. "Não fez nada. Era inocente. Prenderam ele, depois, levaram ele para a Ilha de Anchieta e apanhou muito. Já tinha a saúde ruim e foi torturado. Morreu moço, pelo que sofreu na ilha", disse Terezinha Fukuoka em depoimento que compõe o requerimento de anistia.

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Segundo a ficha do Dops, Ikeda teria se suicidado em 1948, em um sanatório para o qual foi levado após ser transferido da ilha. Não deixou filhos.

Ele não é o único que teria sofrido abusos. Pai e filho, Kenjiro e Fusatoshi Yamauchi ficaram presos por mais de dois anos na ilha. O filho de Fusatoshi, Akira, 75, conta que o pai falava das agressões físicas e verbais que sofreu na época. "Eles foram muito humilhados, torturados", disse. "Batiam para ver se eles confessavam, eu acho. Mas confessar o que, se a única coisa pela qual estavam presos era fazer parte da associação? Não tinha o que confessar, não tinham feito nada de errado".

Fusatoshi Yamauchi na Ilha Anchieta; ele era mecânico e fazia reparos nas máquinas do presídio
Fusatoshi Yamauchi na Ilha Anchieta; ele era mecânico e fazia reparos nas máquinas do presídio Imagem: Mario Jun Okuhara

Dificuldade em obter depoimentos

Eiki Shimabukuro, da associação Okinawa-Kenjin, afirmou que é complicado obter testemunhos para fundamentar as denúncias tanto tempo após os fatos. "Aconteceu 80 anos atrás, né? Então, o pessoal que tinha 10 anos está com 90 anos", disse.

O órgão governamental só passou a aceitar pedidos de anistia a grupos a partir de 2023, sem possibilidade de reparação econômica. Em abril deste ano, o colegiado aprovou os primeiros requerimentos de anistia coletiva da história, às comunidades krenak e guyraroká, pelas invasões às terras indígenas desses grupos durante a ditadura militar (1964-1985).

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Além da passagem do tempo, há outro empecilho, o que Mario Jun chamou de "cultura da vergonha". "É uma questão cultural da colônia japonesa, a cultura da vergonha, do esquecimento. De 'vamos deixar isso para trás, vamos olhar para frente e trabalhar, vencer na vida'", disse o produtor. "O que aconteceu, de certa maneira, né? A colônia japonesa é muito respeitada. Mas ficou esse lapso na história da imigração".

Shimabukuro concorda, e diz que os episódios precisam ser conhecidos. "Quando nós entramos nessa Comissão de Anistia para reparação, tinha muita gente que era contra, né? Aí falavam: 'Poxa vida, aconteceu isso 80 anos atrás, vocês vão abrir essa ferida antiga? Vai falar sobre esse sofrimento, contra o governo do Brasil, que aceitou os japoneses?'", lembrou. "Quase ninguém na sociedade brasileira conhece essas histórias, mesmo os descendentes dos japoneses não conhecem esse assunto".

O conselheiro, junto do Grupo de Pesquisa de Imigrantes Okinawanos no Brasil, luta para que o governo também reconheça outros abusos, além dos cometidos na Ilha de Anchieta. Em 1943, suspeitos de informarem ao Eixo a localização dos navios brasileiros na costa, os imigrantes japoneses, alemães e italianos foram proibidos de morarem no litoral. Cerca de 6.500 japoneses que moravam em Santos tiveram de deixar suas casas em 24 horas, e irem para um centro de imigrantes no Brás, bairro do centro de São Paulo.

Entretanto, a Comissão de Anistia só analisa casos que aconteceram entre 1946 e 1988. "Não dá para separar", falou Shimabukuro. "Vai pedir desculpa para a Ilha Anchieta, mas por Santos não? É como se alguém desse uma bofetada de um lado do rosto. Do outro lado do rosto, com o mesmo motivo, com a mesma mão, dá também, e dizer que desse lado eu peço desculpa, mas do outro lado, como foi antes, eu não vou pedir desculpas. É meio estranho isso".

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