Muito além de 500 mil mortes

Rastro de destruição de meio milhão de vítimas da covid no Brasil atinge setores mais vulneráveis da sociedade

Do UOL e Colaboração para o UOL, em São Paulo (Texto); Tommaso Protti (Fotos)

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

O Brasil é o segundo país a ultrapassar a marca de meio milhão de mortes —os Estados Unidos alcançaram este número em fevereiro. A contagem impressiona (veja mais abaixo).

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social.

Nunca tantos brasileiros estiveram na extrema pobreza —de acordo com o Ministério da Cidadania, 14,5 milhões de famílias estão em situação de miséria (com renda per capita de até R$ 89 mensais). Há ainda 2,8 milhões de famílias vivendo em pobreza (com renda entre R$ 90 e R$ 178 per capita mensais).

Com 14,8 milhões de pessoas sem trabalho, a taxa de desemprego bateu recorde e os mais afetados foram os mais pobres.

Mesmo com a criação de novas vagas e com o aumento do PIB, a renda média domiciliar caiu 10%, na comparação entre os primeiros trimestres de 2021 e 2020. Foi o quarto trimestre seguido de queda.

Para o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, o começo deste ano pode ser considerado "o pior ponto da crise social".

Quem perdeu a vida

As vítimas da covid no Brasil são, segundo a Central de Informações do Registro Civil (Arpen):

  • 56% homens e 44% mulheres
  • 50,3% brancos; 28,4% pardos; 6,5% pretos; 0,9% amarelos; 0,2% indígenas (e 13,7% de raça ignorada)
  • 70,4 % com idade entre 60 e 90 anos; 27,9%, entre 30 e 59 anos; 1,7% com menos de 29 anos

Por causa da vacinação, algumas mudanças começaram a ocorrer nestes registros —no começo deste mês, pela primeira vez, as mortes de pessoas com menos de 60 anos por covid superaram a de idosos.

Mas a pandemia nunca atingiu da mesma forma os diferentes grupos sociais. Os primeiros casos no Brasil foram de pacientes que viajaram para o exterior. Rapidamente, a doença se espalhou também entre os mais pobres.

Em junho do ano passado, a mortalidade de internados por covid em UTIs de hospitais públicos era o dobro da registrada nas unidades privadas (38,5% contra 19,5%). Hoje, a taxa é de 53,7% nas UTIs públicas e 30,2% nas particulares. Para a sanitarista Bernadete Perez, números como esses mostram o "abismo" entre as classes sociais no que se refere ao acesso a serviços de saúde.

No dia a dia do trabalho, a vulnerabilidade das classes mais baixas também é exposta. Enquanto muitos escritórios adotaram o home office e os funcionários podem trabalhar de casa, profissionais com remuneração mais baixa, mas que exercem atividades essenciais, como motoristas de ônibus e caixas de supermercado, permaneceram trabalhando fora e não entraram nos grupos prioritários de vacinação.

A pandemia impactou as pessoas em maior situação de vulnerabilidade, como a população em situação de rua, que teve maior exposição e menor capacidade de proteção. Eles têm menor acesso à testagem, a serviços, a leitos de UTI e menor possibilidade de proteção individual e coletiva.

Bernadete Perez, sanitarista e vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva)

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"A gente tá vivendo como dá"

Na periferia de São Paulo, não é difícil encontrar histórias como a da auxiliar de limpeza Rosilene Maria Ferreira da Silva, 41. Na casa dela, moram oito pessoas --e ninguém tem trabalho fixo. A família depende do auxílio emergencial, de bicos e doações. Antes da pandemia, viviam "com dificuldade, mas até que era estável".

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"Almoçar é raridade"

O número de motoboys que cruzam as cidades paulistas para entregar refeições e outros serviços aumentou durante a pandemia, de acordo com o sindicato da categoria. Esse é o trabalho de Claudio Francisco de Carvalho Junior, 37, desde o ano passado. Mas, apesar de entregar comida, ele nem sempre tem o que almoçar.

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"A rua não é vida pra ninguém"

Quem observa e promove ações solidárias com os moradores em situação de rua do centro de São Paulo tem certeza que esta população aumentou desde o início da pandemia. O UOL acompanhou a distribuição de alimentos numa tarde fria de domingo no Pateo do Collegio.

A reportagem encontrou uma família despejada porque não deu conta do aluguel, um ex-publicitário que foi para as ruas por causa das drogas e um homem que conseguiu reencontrar a família, com ajuda dos voluntários que levam lanches e ouvem os moradores da região.

"A verdade é que você não vai para a rua porque quer. Isso precisa ficar claro", diz Sophia Bisilliat, que organizou a distribuição de café da tarde.

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Apostar na vacina não é suficiente

Na cidade de São Paulo, nem a vacinação contra covid-19 alcançou igualmente os mais ricos e os mais pobres. Estudo do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade) e da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) indicou que, em março e abril, a taxa de imunização nos bairros mais abastados foi igual ou superior a 12,5% dos moradores. Nas áreas mais distantes —e vulneráveis— ficou entre 5% e 7,5%.

A Prefeitura de São Paulo seguiu o PNI (Plano Nacional de Imunização), que priorizou faixas etárias e não as classes sociais mais vulneráveis.

"Tecnicamente é justificável você priorizar os grupos etários de faixas de mortalidade maiores. O problema é que, quando se aplica isso no mapa, você tem uma reprodução de desigualdades", disse um dos autores, Pedro Rezende, ao jornal Agora.

Apesar dos problemas, a vacinação é a principal aposta do governo federal para brecar a transmissão do coronavírus. "Mas, para que seja efetiva, precisa ser ampla e atingir em tempo curto e simultaneamente vários grupos populacionais", afirma o infectologista do Hospital das Clínicas da USP Evaldo Stanislau, lembrando que variantes e cepas surgem com cada vez mais frequência.

Até agora, menos de 15% da população tomou a segunda dose.

A ex-coordenadora do PNI Carla Domingues teme pelos anúncios de "fim da imunização" em alguns meses. Ela cita estudos que mostram que "a população estará protegida quando 70% [do total] tomarem a segunda dose. Mas os EUA com 50% já diminuíram o impacto". "Agora, quão duradouro é esse impacto, não sabemos."

Estamos tendo um equívoco grande em falar que estaremos com a população vacinada em setembro e outubro. São duas doses de vacina. Então corremos o risco de dar falsa sensação de dose de segurança, que com uma única dose é o suficiente. Isso não é factível.

Carla Domingues, médica e ex-coordenadora do PNI (Plano Nacional de Imunização)

"Tiveram medo da vacina"

As medidas de restrição recomendadas pelas autoridades batem de frente com a cultura indígena --nas aldeias, eles decidiram se isolar, mas não concordavam com internação, por exemplo. Outro problema recorrente foram as fake news sobre vacinas. Mesmo no grupo prioritário, eles recusaram a imunização.

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"Criamos a visita do adeus"

Se de um lado há pacientes que recusam tratamentos e até orientações, do outro há profissionais essenciais que estão exaustos por enfrentar a pandemia nas ruas, sem folga. Nos hospitais, enfermeiros criaram maneiras de dar conforto a pacientes e familiares, como uma despedida digna.

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E depois da covid?

Desde março do ano passado, o mundo acompanha os números da pandemia: mortes, casos, internações e, agora, taxa de vacinação. Aqui, o Ministério da Saúde destaca outro dado: a soma de "recuperados" —16 milhões de pessoas. Mas sem detalhes sobre o estado de saúde.

Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), um em cada 10 pacientes de covid-19 apresenta sequelas até três meses após o diagnóstico e 30% podem apresentar sintomas persistentes nove meses depois. Entre as complicações, estão inflamação cardiovascular, problemas respiratórios e dermatológicos, depressão, ansiedade e a perda de paladar e olfato.

Questionado pelo UOL, o governo não falou sobre atendimento de pacientes com sequelas no sistema público. Citou apenas a criação de um programa piloto de reabilitação, em cinco hospitais. A previsão é que um protocolo para tratamento deste público saia até agosto.

"O que temos visto é que dois terços das pessoas egressas de UTI têm tido sequelas bem graves", diz Bernadete Perez, da Abrasco.

De acordo com ela, existem poucos centros públicos de tratamento para reabilitação. Assim, o maior problema não está no serviço, mas no acesso dos pacientes a esses tratamentos. E depois —como as sequelas podem atrapalhar quem não recebeu atendimento adequado pós-covid.

O que o governo considera como recuperados são pessoas que passaram por momentos de dor, de sofrimento e muitas delas continuam com sequelas. Sequelas que, em algumas profissões, podem impossibilitar o trabalho --como para um jovem atleta. Sequelas que nós nem sabemos quanto tempo duram.

Natalia Pasternak, microbiologista

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Brasileiros isolados

Outros países que apostaram nas orientações de autoridades em saúde começam a reabrir os negócios e anunciam datas para receber estrangeiros. Nós seguimos isolados. Municípios que vivem do turismo ainda não têm previsão de recuperação plena.

Em Foz do Iguaçu (PR), na tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina, o movimento aumentou neste ano, na comparação com o início da pandemia, mas houve uma mudança no perfil dos turistas —os estrangeiros desapareceram.

A cidade tem atrações naturais, como as cataratas, e a facilidade de acesso para compras em outros dois países. Mas a fronteira com a Argentina está fechada desde o início da pandemia. Trinta voos chegavam à cidade, por dia. Hoje, são só seis.

O secretário de Turismo, Paulo Angeli, diz que 52% da economia da cidade depende deste setor. A queda de arrecadação chegou a 80%.

Estamos trabalhando para proteger o pequeno empresário e o autônomo. Os grandes empresários têm seus recursos."

A prefeitura criou um programa de empréstimos e outro para ajudar funcionários do turismo —contratou vans e guias para levarem moradores de Foz aos passeios turísticos.

Angeli acredita que a situação pode começar se normalizar a partir de outubro. Para isso, é necessário que o protocolo sanitário seja respeitado e que o calendário de vacinação avance. Em todo o país.

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"O futuro ainda é tenso"

Com a retração na economia, pequenos empresários fecharam negócios e mudaram o padrão de vida. Ricardo Tchirichian mudou de casa, de carro e trocou as filhas de escola.

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"A pandemia destruiu tudo"

Parte da população mais vulnerável, trans e travestis se viram sozinhas e sem proteção. Para trabalhar na rua, enfrentam o vírus e a violência, que aumentou na pandemia.

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Para ajudar

  • Casa Neon Cunha

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  • Treino na Laje

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  • Associação de Moradores da Vila Brasilândia

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  • Paróquia Bom Jesus dos Passos de Pinheiros

    Banco Bradesco / Agência 0648-3 / C/C 15.772-4 / CNPJ 63.089.825/0408-71 / Telefone: (11) 3085-9740

  • Outras instituições

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