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Diogo Schelp

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fotos da pandemia são antídoto para negacionismo que potencializou mortes

Acometido pela covid-19, Giuseppe Guardabasci, 84, é levado por paramédicos para o hospital, em Ariano Irpino, na Itália, em março de 2020 - André Liohn
Acometido pela covid-19, Giuseppe Guardabasci, 84, é levado por paramédicos para o hospital, em Ariano Irpino, na Itália, em março de 2020 Imagem: André Liohn

Colunista do UOL

19/06/2021 14h15

Antônio, de 7 anos, entra no meu escritório, aponta para uma grande foto pendurada na parede e pergunta: "O que está acontecendo ali, pai?"

Respondo de maneira clara e direta, como sempre: "Esta foto foi feita pelo meu amigo André há mais de um ano em uma cidade da Itália chamada Ariano Irpino. Este senhor deitado ao centro está com covid. Os três homens ao redor que parecem astronautas, com essas roupas de plástico brancas, são médicos e estão colocando ele em uma maca para levar ao hospital. O homem estava muito ruim há vários dias, mas antes não havia vaga no hospital da cidade. As pessoas em volta, assistindo a tudo, são a família do doente".

"Parece 'Os Comedores de Batata', um quadro do Van Gogh que eu estudei na escola", diz o menino que está praticamente sem ir às aulas presenciais desde março de 2020 — aliás o mesmo mês em que o fotógrafo brasileiro André Liohn, especializado em cobertura de guerras e crises humanitárias, registrou aquela cena da pandemia na Itália.

"Escola" para Antônio e a irmã Valentina, 10, é uma tela de computador onde eles interagem precariamente com professoras e colegas. Os dois até chegaram a frequentar algumas aulas presenciais no segundo semestre do ano passado e no início deste ano, quando as taxas de contaminação estavam mais baixas, mas foi só isso.

Ainda assim, são privilegiados. Têm acesso à internet e professores empenhados. Outros não desfrutam das mesmas condições. Em 2020, no Brasil, quase 9 milhões de crianças e adolescentes ficaram fora da escola ou não tiveram acesso a nenhuma atividade de ensino, mesmo matriculados, segundo dados da Unicef.

Ainda levaremos muito tempo para compreender a dimensão do prejuízo causado diretamente pela pandemia e por decisões erradas ou flagrantemente criminosas do poder público. Os impactos certamente serão sentidos por anos, talvez décadas.

Meio milhão de mortos até agora, e a pandemia nem acabou.

Acredito que depois dos 500.000 brasileiros mortos por covid-19, dos seus órfãos e daqueles que sobreviveram à doença e enfrentam as sequelas até hoje, as maiores vítimas da pandemia no Brasil são as crianças e os adolescentes, seja pela privação do convívio social, seja pelo acesso precário ou inexistente à educação.

Parte desse prejuízo a toda a nova geração de brasileiros era inevitável, pela necessidade de conter a disseminação do vírus. Mas a maior parte se deve à total falta de prioridade que se dá à educação no país, evidente na omissão das autoridades que não propiciaram acesso ao ensino à distância ou que autorizaram a abertura de clubes e bares enquanto as salas de aula permaneciam trancadas.

Pelo menos meu filho sabe mais de Vincent van Gogh do que eu.

Fiz uma busca na internet e ele tem toda razão. A foto de Liohn guarda mesmo muitas semelhanças com "Os Comedores de Batata". Parte da cena está na penumbra, o que lhe confere mais dramaticidade, mas o centro da ação é iluminado de cima por um candeeiro, no caso do quadro, e por um lustre, na foto.

Em ambas as imagens, há uma mesa no centro e pessoas ao redor. As paredes e os móveis das casas são rústicos. Os ambientes, humildes.

Apesar dos dramas humanos que a pintura e a foto retratam, não há glamurização ou embelezamento artístico da pobreza e da doença. Os protagonistas das cenas são apresentados com dignidade e humanidade, mesmo em seu contexto de vulnerabilidade ou de sofrimento e preocupação.

Quando pedi a Liohn que me cedesse uma foto de uma de suas reportagens da pandemia, eu andava às voltas com debates infrutíferos com negacionistas, pessoas que minimizavam a gravidade da doença causada pelo coronavírus, que ignoravam ou desvirtuavam evidências científicas para criar falsas dicotomias entre saúde pública e economia, defendendo a linha de que é melhor "deixar a natureza seguir seu curso" para "salvar empregos", e que acusavam a imprensa de "provocar histeria", exagerando o impacto da pandemia.

Além da cena na Itália, Liohn me deu também a foto de uma menina indígena sendo atendida por enfermeiras em um posto de saúde em Dourados (MS), em junho do ano passado. Sua mãe havia sido internada com covid-19 e a criança chorava, assustada com a situação.

Enfermeiras atendem menina indígena em Dourados (MS), em junho de 2020 - André Liohn - André Liohn
Enfermeiras atendem menina indígena em Dourados (MS), em junho de 2020
Imagem: André Liohn

As duas fotos servem para me lembrar a todo instante que 300.000, 400.000 e, agora, meio milhão não são apenas números. Por trás de cada um dos 500.000 mortos por covid-19 no país há uma história de vida, um rosto, um conjunto de sonhos desperdiçados e muitos parentes e amigos que ficaram para trás com o vazio emocional, com a saudade, com a perda de um arrimo de família.

As fotos são uma homenagem às vítimas da pandemia, mas também aos profissionais de saúde (tenho vários na família, alguns atuando na linha de frente do combate à covid-19) e aos jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas que, apesar das intimidações e dos riscos, seguem cumprindo seu dever de levantar os fatos e retratar a realidade.

As cenas de caos e de colapso do sistema hospitalar da Itália em março do ano passado deveriam ter servido de alerta e de lição para o governo brasileiro. Estava mais do que claro que o coronavírus não seria apenas mais uma "gripezinha".

No auge, no dia 2 de abril de 2020, a Itália registrou uma média móvel diária de 13,47 óbitos por milhão de habitantes. O pico registrado no Brasil, em 12 de abril deste ano, foi um pouco superior, de 14,70 mortes diárias por milhão, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Em pronunciamento na TV no dia 24 de março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro desdenhou dos perigos evidentes e disse que o Brasil estava livre da praga que afligia a Itália porque somos um país tropical e com uma população mais jovem.

"Espalharam exatamente a sensação de pavor, tendo como carro-chefe o anúncio do grande número de vítimas na Itália. Um país com grande número de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso. O cenário perfeito, potencializado pela mídia, para que uma verdadeira histeria se espalhasse pelo nosso país", disse Bolsonaro.

Se ele ao menos tivesse admitido o engano nos meses que se seguiram. Mas não. Os mortos seguiram se acumulando e o presidente apenas aderiu a novos argumentos tortos para se recusar a apoiar as medidas que poderiam minimizar o dano à saúde pública.

Se adotadas no tempo certo, com inteligência e em uníssono com estados e municípios, seria possível inclusive reduzir o período de fechamento das atividades, amenizando o impacto econômico dessas medidas.

Mas era mais importante, para Bolsonaro, criar uma narrativa de "nós contra eles", de "economia versus histeria sanitária" e de "direita libertária versus comunismo coletivista".

Bolsonaro assumiu-se como líder de uma seita política que crê em algo que podemos chamar de darwinismo viral: os mais velhos e fracos podem morrer, "fazer o quê" e "não sou coveiro", em suas próprias palavras; os fortes serão como ele e terão quando muito "um resfriadinho". Nem isso era verdade.

Bolsonaro começou a empilhar os mortos —que agora chegam à impressionante marca de meio milhão de vidas perdidas para a covid-19— já em março de 2020, portanto, quando anunciou em cadeia nacional que as imagens da Itália não passavam de uma "verdadeira histeria".

"O que está acontecendo ali, pai?"

E eu poderia ter respondido: "Essa foto, meu filho, mostra uma lição que não foi aprendida e um alerta que foi ignorado. De propósito".