Sob controle?

Com 600 mil vidas perdidas, Brasil vê ritmo de mortes por covid mais lento, mas variante delta ainda preocupa

Ana Carla Bermúdez, Leonardo Martins e Letícia Mutchnik Colaboração para o UOL e do UOL, em São Paulo Simon Plestenjak/UOL

O Brasil chega à marca das 600 mil mortes por covid-19 com quase metade da população completamente vacinada contra o coronavírus, em meio à retomada do comércio e de eventos e na expectativa por uma sequência de feriados prolongados.

Hoje, a média móvel diária de mortes está abaixo de 500. Em abril —no pior momento da pandemia no país—, alcançou 3.125.

Entre janeiro e abril deste ano, o país somou quase 210 mil mortes. Em 17 de junho, atingimos 500 mil —de lá para cá, foram quase quatro meses e 100 mil vidas perdidas.

Hoje, em números absolutos, a quantidade diária de mortos é próxima ao registrado em abril do ano passado, no começo da pandemia, e em outubro e novembro, quando houve uma queda nos registros.

Neste ano, depois de uma forte aceleração no primeiro semestre, o ritmo dos óbitos caiu entre o fim de junho e o meio de setembro, quando estabilizou. Nesse mesmo período, 70 milhões de brasileiros finalizaram a imunização com a segunda dose ou dose única.

No mundo todo, a tendência é de queda nas mortes —a soma de óbitos na semana passada foi a menor em um ano. Mesmo assim, o número de vidas perdidas por dia no Brasil continua alto. Segundo a Organização Mundial da Saúde, nos últimos sete dias, o acumulado por aqui (3383) só ficou abaixo de Estados Unidos (12.674), Rússia (6.294) e México (3.520).

O Brasil é o nono país com mais mortes por cem mil habitantes (281,72) —atrás do Peru (605,12) e de países do leste europeu, como Bósnia e Herzegovina (328,25) e Hungria (309,73).

Só na terça (5), foram 686 óbitos por aqui —no início da pandemia, o mundo ficou estarrecido quando Itália e Espanha confirmavam perto de 700 mortes por dia, cada um.

Setembro foi o mês com menos mortes neste ano (16.275) no Brasil, mas apresentou uma tendência de aceleração na média no dia 22 —exatamente duas semanas após o feriado de 7 de Setembro. Desde então, os números permanecem estáveis.

Agora, teremos três feriadões em pouco mais de 30 dias —na próxima terça-feira, 12 de outubro (Nossa Senhora Aparecida); em outra terça-feira, 2 de novembro (Finados); e em uma segunda-feira, 15 de novembro (Proclamação da República).

No ano passado, essas folgas ocorreram em um período de baixa nos indicadores (casos, mortes e internações por covid) e flexibilização da quarentena, o que fez com que muita gente relaxasse em relação às medidas de proteção. Após os feriados prolongados de outubro e novembro, houve aumento nas internações.

Apesar da aparente melhora nos registros recentes, milhares de famílias permanecem em luto. Especialistas ouvidos pelo UOL pedem cautela.

Meu marido estava desempregado, eu estava trabalhando, e a empresa me chamou para o presencial. Ele ia ao mercado às 6h, não saíamos de casa, não recebíamos ninguém. Ficamos doentes. Se me perguntar onde contraímos...não sei. Fui internada com mais de 50% do pulmão comprometido e ele começou a passar mal também. O médico queria interná-lo, mas meu marido assinou a própria alta ao saber que a diária no hospital custaria R$ 16 mil. Era a segunda onda e os hospitais públicos estavam lotados. Ele voltou ao hospital privado, e teve que ser intubado. Piorou muito até 8 de abril, quando se foi. Desde então, não existe mundo. Não perdi só o pai da minha filha, perdi um amigo, um companheiro, meu porto seguro, a minha alegria... Ele era tudo. A dor só aumenta. Tomei as duas doses da vacina, minha filha tomou uma. Agradecemos a Deus, mas ele não teve essa chance. Estou falando da negligência do governo de poder ter tomado atitude antes. Quem sabe ele poderia ter tido essa oportunidade, e não teve. Minha filha será criada sem o pai. Não era só um número. É a minha vida."

Lidiane Perez Tenório, 43, professora em São Paulo

Uma variante no meio do caminho

Entre os obstáculos para um cenário mais otimista de controle da pandemia, estão a baixa testagem, a dificuldade no monitoramento de casos —os estados têm reclamado da instabilidade no sistema do Ministério da Saúde— e o aparecimento de variantes e cepas do coronavírus.

A delta, variante temida por sua maior capacidade de transmissão e responsável por explosões nos casos, internações e mortes por covid em outros países, ainda não foi capaz de elevar os números de óbitos por aqui.

Médicos não descartam a possibilidade de uma nova alta nos indicadores. O neurocientista Miguel Nicolelis lembra que antes de os Estados Unidos atingirem 50% de vacinados com duas doses, em agosto, o país acreditava ter controlado a pandemia. Com a reabertura e a chegada da delta, algumas localidades voltaram a registrar alta nos índices de ocupação de UTIs.

"Nós deveríamos estar nos preparando para uma possível explosão da delta", alerta.

Para o infectologista Evaldo Stanislau, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o futuro é uma "incógnita". "Muitos elementos indicam que talvez a gente evolua para um estágio melhor, mas ainda há muita incerteza."

Estamos vivendo um cabo de guerra entre a variante delta e a vacinação. Felizmente, por um bom tempo no Brasil, a vacinação ganhou. Infelizmente, nas últimas semanas, os números parecem voltar a crescer em alguns locais. Precisamos estar atentos.

Pedro Hallal, epidemiologista e professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas)

Moro com a minha mãe e, desde o começo da pandemia, nós nos cuidamos muito. No fim do ano, já fazia muito tempo que não via meu avô, 94, que não estava bem de saúde e morava em Mato Grosso do Sul. Decidimos ir de carro, para evitar contaminação, e ficamos o tempo todo de máscara. Em fevereiro, era aniversário dele e fomos de novo, repetindo os protocolos. Foi a última vez que o vi. No fim de maio, ele piorou. Até fizemos as malas, mas minha tia ligou avisando que todos da casa tinham testado positivo para covid. Meu avô morreu pouco depois. Não pude estar com ele nos últimos momentos. Não houve velório. Não sei se a ficha não caiu ainda, se essa sensação vai ficar comigo, mas é estranho, porque parece que ainda vou vê-lo. Com medo, só flexibilizei os cuidados em setembro, depois da segunda dose da vacina. Mas não tanto. Acho que podemos nos cuidar por mais um tempo. Não custa um pouco de esforço."

Luna Foschini, 20, estudante de arquitetura e estagiária na Fiocruz em Curitiba

A cultura da vacina

Dados do consórcio de veículos de imprensa do qual o UOL faz parte indicam que 70% dos brasileiros já tomaram aos menos a primeira dose da vacina contra covid. Em todo o mundo, foram 46,5%, segundo o Our World in Data, painel da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

A vacinação avança, ainda que haja percalços como a demora na aquisição das doses, as falhas na distribuição e na infraestrutura e os discursos e lives do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que diz não ter se vacinado e divulga informações incorretas e falsas sobre o imunizante.

Entre os países que mais vacinaram contra covid, ainda segundo o Our World in Data, o Brasil está à frente de Alemanha (68% da população com ao menos uma dose) e Estados Unidos (64,5%), que começaram suas campanhas antes. E tem índice próximo do Reino Unido (72%), que "inaugurou" a imunização contra covid no mundo, ainda em dezembro do ano passado.

"Há outros países que têm vacinas em quantidade suficiente, mas não têm essa capilaridade do SUS [Sistema Único de Saúde] e nem uma população responsiva, que busca e acredita no imunizante", diz a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do PNI (Plano Nacional de Imunizações).

"Não é o fato de o presidente atual falar mal de vacina que vai mudar tudo isso", complementa o epidemiologista Pedro Hallal, da UFPel.

Para Domingues, se os processos de compra de imunizantes —alvos de investigação na CPI da Covid— tivessem sido mais rápidos, a primeira fase da vacinação por aqui poderia ter sido finalizada em julho.

Levantamento do Info Tracker, sistema de monitoramento digital da USP e da Unesp, indica que, até o fim deste ano, mais de 80% de toda a população terá tomado ao menos a primeira dose (adultos e crianças).

A volta do comércio e dos grandes eventos

A vacinação e a melhora nos indicadores de mortes e internações nos últimos meses levaram a um processo de reabertura de serviços e retomada das atividades.

O governo paulista anunciou na quarta (6) que 70% dos municípios não registraram mortes na última semana e o índice de ocupação de UTIs é o menor do ano (31,5%). No estado, não há restrições de horários e de público para bares, restaurantes e estabelecimentos comerciais desde agosto e o governo estadual liberou também eventos esportivos —os estádios de futebol já voltaram a receber torcedores. Em novembro, será a vez da Fórmula 1.

No Rio, a exigência de passaporte sanitário para entrar nos estabelecimentos foi parar na Justiça. A prefeitura carioca já liberou há um mês o público no Maracanã.

Hallal diz ver a reabertura como uma "necessidade" e afirma que esse processo, quando feito "de forma responsável", "pode durar". "Mas pode também acontecer, como se vê em outros países, de novas medidas restritivas pontuais serem necessárias", pondera.

Nicolelis, por outro lado, afirma que os gestores brasileiros "chutaram o balde". "Não podíamos estar permitindo mil pessoas em shows, nem 20 mil pessoas em estádio de futebol, como aconteceu no Rio."

Fiquei 11 meses sem sair de casa para nada. Até pedia o cigarro no aplicativo de delivery e pagava o triplo do preço. Quando a minha avó, 94, faleceu em dezembro de 2020, com covid, meio que liguei o foda-se. A pessoa que mais me preocupava tinha morrido e os meus pais já estavam à beira da vacina. Aí eu voltei a sair, ir ao supermercado e pensei que, como eu estava voltando para essas coisas, já poderia ir para os jogos do Flamengo. No dia 23 de setembro, logo depois do jogo do Flamengo pela Libertadores, ia ser o aniversário dela. Na hora da partida obviamente lembrei dela, porque minha avó era torcedora —não doente que nem eu, mas era flamenguista. Ainda assim, a preocupação no Maracanã, por mais que fossem 30 mil pessoas, era muito menor do que no transporte público. Então não fiquei tensa, achei tranquilo. Com a morte da minha avó, percebi que se tiver que pegar vai pegar, saudável ou doente, jovem ou velho...se tiver que ser caso grave, vai ser. Aí meio que falei: vou brincar de roleta-russa."

Liane da Cruz Cordeiro Moreira, 35, bióloga no Rio

De olho nas viagens

O setor do turismo também sente o reflexo da retomada. Dados da Abav (Associação Brasileira dos Agentes de Viagem) apontam para um aumento na demanda —já de olho no fim do ano.

Quando comparados os orçamentos solicitados na primeira quinzena de maio e na primeira quinzena de junho, por exemplo, houve aumento de 20% para viagens para setembro e de 14% para dezembro. O Nordeste foi a região mais procurada.

As agências têm identificado algumas mudanças no comportamento, como mais interesse em locais que seguem com rigor os protocolos de segurança contra o coronavírus, como resorts "all inclusive" —com tudo incluído, não é preciso se deslocar para refeições, por exemplo.

Há ainda expectativa quanto às viagens internacionais —mesmo com entraves envolvendo a CoronaVac. Apesar de alguns países da Europa, como Espanha, receberem brasileiros que receberam esta vacina, mas ainda não há previsão da liberação da União Europeia como um todo. Portugal, por exemplo, não aprovou a vacina chinesa, mas aceita a entrada de quem testa negativo.

As companhias aéreas têm restabelecido seus voos para diferentes destinos internacionais, como Caribe e Europa. Para os EUA, as buscas por voos aumentaram 350% assim que foi informada a possibilidade de brasileiros entrarem no país, segundo a Latam.

Essa movimentação também é sentida nos aeroportos. A quantidade de embarques e desembarques nos terminais da Infraero subiu quase 200% em um ano —de 1.135.371 em agosto de 2020 para 3.320.993 em agosto de 2021.

Sou guia turístico há nove anos. Quando começou a pandemia, trabalhava em agência, mas a gente ficou receoso de ir para a rua e pegar o vírus. Com isso, fiquei sem emprego e sem fonte de renda —as economias que tinha foram todas, nem pagávamos as contas. Uma cesta básica era como um troféu: quando chegava com comida, minha esposa e as crianças vibravam. Só em março deste ano que começamos a sair do aperto. Comecei a trabalhar como autônomo e fico no elevador Lacerda oferecendo walking tour (passeio a pé) pelos pontos históricos de Salvador. Meu maior medo era pegar a covid fora de casa e trazer para a minha família, porque os turistas estão meio desleixados. Mas era o único jeito. Depois que perdi os meus amigos de infância para essa doença, comecei a ficar ainda mais preocupado, até porque só tomei a primeira dose da vacina. O número de turistas vai aumentando, acho que as pessoas estão achando que a pandemia já acabou. Eu sigo com a máscara colada no rosto."

Cléber Batista dos Santos, 41 anos, guia turístico em Salvador

Dá para planejar as festas de fim de ano?

Sobre as festas de fim de ano, se os indicadores continuarem estáveis, Stanislau e Hallal dizem que é possível organizar uma comemoração familiar minimizando os riscos de contaminação.

"Não existe segurança absoluta e risco zero", afirma Stanislau, que defende a testagem (por meio de testes de antígeno, na farmácia, por exemplo) antes de qualquer reunião com parentes ou amigos.

Mas festas maiores devem ser limitadas —ou seja, não é recomendável organizar Carnaval sem medidas de restrição, como anunciado pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD).

"Quando a gente fala em um evento de grande porte como Carnaval, possivelmente vai ser muito difícil controlar as pessoas", avalia o médico. "Ainda estaremos em um período de risco para que esse evento acabe sendo disseminador de prováveis novas cepas e isso pode trazer problemas."

Hallal destaca a importância de realizar eventos —ainda que pequenos— em locais abertos, com boa circulação do ar. "Acho que nesse momento as famílias podem e devem planejar [encontros], até porque todo mundo está precisando. Mas, se a situação [da pandemia] piorar, é outra história", ressalta.

Nicolelis, por outro lado, defende que ainda é preciso aguentar mais um pouco, até que 75% ou 80% dos brasileiros tenham completado a vacinação e o país tenha passado —ileso ou não— pela disseminação da delta. "Não dá para fazer planos para o fim do ano nem para o Carnaval. Acho uma irresponsabilidade completa."

É natural que, em um evento social, encontrando pessoas queridas que não se vê há muito tempo, as pessoas vão querer se abraçar, se beijar. O protocolo vai durar na primeira hora. Na segunda, não. Temos que ser realistas. Por isso, acredito que a testagem é a melhor opção [para encontros de fim do ano].

Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas, em São Paulo

Cuidados para evitar a contaminação

  • Manter o uso de máscaras de uma forma adequada

    Nariz e boca têm que estar cobertos e a máscara, limpa e seca.

  • Não esquecer de higienizar as mãos

    Continuar usando álcool em gel e lavando as mãos sempre que necessário.

  • Testagem e vigilância

    É importante confirmar o diagnóstico rápido e manter o isolamento se estiver infectado.

  • Prefira atividades ao ar livre

    O risco de contaminação em ambientes abertos é menor do que em locais fechados.

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