Diplomacia em chamas

Insultos, pressões e comércio em jogo: os bastidores no G7 e no Brasil da crise na floresta amazônica

Jamil Chade Colaboração para o UOL, de Genebra (SUI) Dominique JACOVIDES/POOL/AFP

Tensão, manipulação de informações, insultos, arranjos políticos e muita diplomacia.

Longe das câmeras e das redes sociais, a crise na Amazônia mobilizou governos em diferentes partes do mundo e colocou o Brasil no centro das atenções.

Com base em depoimentos de diplomatas que estiveram nos encontros, o UOL reconstitui cinco dias que chacoalharam a imagem do Brasil e abriram uma crise sem precedentes na democracia para a política externa do país.

Em cada gesto ou ação, líderes calculavam o impacto que suas ações poderiam ter. Mas, em quase todos os casos, mediam acima de tudo a repercussão que seus atos poderiam gerar entre seus próprios eleitores e para sua popularidade local, regional ou internacional.

Quanto à floresta? Ela seguiu ameaçada e entendeu, uma vez mais, que quando o assunto é influência e poder, ela continua na periferia das prioridades do Brasil e do mundo.

Victor Moriyama/GREENPEACE/AFP Victor Moriyama/GREENPEACE/AFP

Quinta-feira, 22 de agosto: o alerta

Se os incêndios eram já uma realidade por alguns dias e as fotos do momento em que a cidade de São Paulo foi atingida pela fumaça já causavam surpresa, foi na quinta-feira (22) que o fato ganhou uma nova dimensão e deixou o mundo das redes sociais.

O presidente da França, Emmanuel Macron, depois de consultar Alemanha e Canadá, optaria por colocar o assunto na agenda do G7. Decretando a crise como um tema "internacional", o chefe de Estado francês esperava acalmar ONGs de seu país que, naquela mesma semana, tinham indicado que promoveriam um boicote ao evento dos presidentes em Biarritz.

Macron, segundo as ONGs, tinha evitado a todo custo uma aproximação e uma consulta maior com essas entidades ao preparar a agenda do encontro. Ofereceu apenas um almoço, já às vésperas do encontro, o que foi recusado por parte dos ambientalistas.

Nas redes sociais, porém, o que prevalecia era o chamado de Macron para salvar "nossa casa". Paris sabia da fragilidade da imagem do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, pelo mundo e das reações negativas que tinham sido geradas quando Brasília optou por esnobar o dinheiro da Alemanha e da Noruega para o Fundo Amazônia.

Protestos em defesa da Amazônia no exterior

O timing do chamado de Macron não foi por acaso. Um dia depois, embaixadas brasileiras pelo mundo seriam alvo de um protesto, liderado principalmente por estudantes e convocado até mesmo com a ajuda da ativista sueca Greta Thunberg.

Dentro do Itamaraty, a ordem era a de mostrar que tudo não passava de uma manobra "neocolonial" do governo francês, enquanto se espalhavam teorias da conspiração. Imediatamente, o Planalto passou a usar o fato de Macron ter veiculado uma imagem antiga das queimadas como "prova" da instrumentalização por parte de Paris.

Mas, nos bastidores, o temor era real de que a repercussão se transformasse em um boicote aos produtos agrícolas nacionais. Munidos de uma orientação de doze páginas e com 59 pontos, embaixadores brasileiros foram instruídos a dar respostas aos governos locais e defender a postura do governo brasileiro. O que estava em jogo, na avaliação do Planalto, era a credibilidade do país.

Zakaria Abdelkafi/AFP Zakaria Abdelkafi/AFP

Sexta-feira, 23 de agosto: protestos e ameaças

Se no Itamaraty a ordem foi a de proteger fisicamente as embaixadas, os protestos que se multiplicaram deram legitimidade para que, na sexta-feira, outros governos fossem a público declarar seu apoio à iniciativa de Macron, entre eles o da Alemanha, Canadá e Reino Unido. Em paralelo, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, alertava que o mundo não poderia se dar o luxo de perder a Amazônia.

Horas depois, a ofensiva ambientalista ganhava contornos comerciais. No Reino Unido, uma petição no Parlamento somava assinaturas a cada minuto para pedir sanções contra o Brasil.

Mas o maior golpe viria do governo francês. À imprensa local, Paris insinuaria que poderia vetar o acordo Mercosul-União Europeia, recém-assinado. E ainda emendou: Bolsonaro "mentiu" sobre seus compromissos ambientais durante a cúpula do G20, no primeiro semestre do ano.

O uso do termo "mentira" para um chefe de Estado é tão raro como a crise que se costurava.

Na diplomacia brasileira, vozes surgiram apelando para que o embaixador do Brasil em Paris fosse convocado de volta, num gesto de protesto. No Palácio do Planalto, a irritação foi explícita, com assessores de Bolsonaro alertando que ele não "poderia deixar isso barato".

O passo desses países em direção a uma crise diplomática ganhava corpo, aprofundando a pressão de produtores nacionais sobre o governo brasileiro para que reagisse. Se não bastasse, a Irlanda também anunciaria que suspenderia o acordo com o Mercosul, mesmo sinal dado por alguns deputados austríacos e pelo governo de Luxemburgo.

Amazônia: crise tem Bolsonaro culpando ONG e crítica de Macron

Em Biarritz, os negociadores de cada um dos sete países começaram a desenhar o que poderiam ser opções de resposta à crise. Tudo isso sem o envolvimento do Brasil.

Mas nem todos na Europa estavam de acordo com Macron em vincular o comércio e a Amazônia. No final daquele dia, pressionados por seus exportadores, alemães e espanhóis deixaram claro que não gostariam de ver o tratado com o Mercosul sendo condicionado pelos incêndios na floresta. Mesmo se estivessem preocupados com a Amazônia.

Outra dificuldade para Macron seria o comportamento de Donald Trump, aliado de Bolsonaro. Enquanto Paris fazia ameaças comerciais, a Casa Branca tomou um caminho contrário. Trump telefonou para o brasileiro e, nas redes sociais, fez questão de mencionar que o comércio entre os dois países tinha um futuro promissor.

Estava claro para os europeus que Washington tentaria blindar Bolsonaro. Mas, dentro da chancelaria brasileira, não faltaram aqueles que alertaram que esse gesto americano poderia custar caro. O pagamento poderia vir na forma de mais pressão para que o Brasil se distanciasse do Irã, um mercado estratégico para os exportadores agrícolas nacionais.

Reproduçao / Facebook

Sábado, 24 de agosto: a coordenação

As rusgas entre Bolsonaro e Macron começaram antes mesmo de o brasileiro assumir o governo. No final de 2018, em Buenos Aires, o francês alertaria que só com compromissos ambientais poderia aceitar um acordo com o Mercosul e deixou claro que tal postura não era a do então presidente eleito.

Meses depois, foi a vez de Bolsonaro desdenhar a visita do chanceler francês, Jean-Yves Le Drian. Em sua agenda oficial, estava previsto um encontro com o ministro em Brasília. Mas, depois de saber que o chefe da diplomacia de Macron esteve com ativistas e ONGs, Bolsonaro optou por cancelar o encontro. No lugar da reunião, foi cortar o cabelo. "Não sabia que era um caso de urgência capilar", ironizou o francês.

Macron sabia que precisaria buscar uma forma de manter a interlocução com a região, mesmo entendendo que os canais com o governo brasileiro já tinham sido duramente afetados, dois dias de iniciar uma campanha internacional.

O escolhido para fazer a ponte foi Sebastián Piñera, presidente do Chile e que tinha sido convidado para o G7. O chileno é um dos presidentes da região mais próximos de Bolsonaro e, portanto, seria instrumental para uma coordenação.

Ao chegar a Biarritz, ele seria imediatamente convocado para uma conversa com Macron. O francês explicou seu plano e, já naquele momento, Paris havia estipulado que a ajuda seria de US$ 20 milhões, uma fração do que deveria ser o compromisso financeiro dos países ricos para lidar com as mudanças climáticas.

Piñera, por sua vez, teria a dura tarefa de manter contatos telefônicos com os líderes sul-americanos para conseguir convencê-los de que o plano era uma ideia boa e que não se tratava de uma ofensiva indevida.

O chileno, numa conversa com Macron, já o alertaria no sábado mesmo que a iniciativa apenas funcionaria se ficasse claro que não se tratava de criar um constrangimento para a região e nem colocasse em questão a soberania de cada país. Na conversa, o posicionamento irredutível do Brasil sobre a Amazônia seria alvo de um debate e Piñera insistiria sobre a necessidade de agir com prudência.

Ao mesmo tempo, o chileno iniciou contatos em toda a região para saber quais seriam as necessidades mais imediatas. Colômbia e Peru, além do próprio Brasil, seriam os principais focos das trocas diplomáticas.

Uma última reunião, na noite de sábado, voltaria a ocorrer entre o chileno e Macron. Ali, ficaria determinado que o ideal seria dividir as ações em duas etapas. Num primeiro momento, o G7 anunciaria uma ajuda emergencial para combater o fogo. Ao mesmo tempo, seria informado que o tema do reflorestamento seria retomado, com todos os governos, na Assembleia-Geral da ONU em Nova York, em setembro.

RONALDO SCHEMIDT / AFP RONALDO SCHEMIDT / AFP

Domingo, 25 de agosto: o telefonema

O presidente do Chile sabia e falava abertamente que temia que uma ação pouco habilidosa do G7 pudesse, no fundo, aprofundar a crise e afastar ainda mais o Brasil. No domingo, Piñera voltaria a telefonar para Bolsonaro para o atualizar sobre o andamento das negociações e indicar o que o G7 faria, no dia seguinte. Ele acreditava num acordo.

A mesma preocupação tinha a chanceler Angela Merkel, da Alemanha. Num flagra de uma câmera indiscreta, pode-se ouvir a alemã dizendo a Macron claramente que caberia ao G7 telefonar diretamente para Bolsonaro ao longo da semana para explicar o plano e que não se tratava de uma ação contra o brasileiro.

Câmera flagra Merkel dizendo a Macron o que fazer sobre Bolsonaro

Berlim, mesmo tendo suspendido o repasse para o Fundo Amazônia, voltou à sua tradição de não isolar um país, principalmente quando se trata de um parceiro comercial.

Assim vem sendo feito com a Rússia e assim os alemães insistiam que deveria ocorrer com o Brasil, destino de enormes investimentos de suas multinacionais e esperança de abertura de mercados com o acordo com o Mercosul.

O constrangimento de Macron diante da exigência da experiente chanceler obrigou o cinegrafista a ser forçado a desligar sua câmera. Mas o registro já estava feito e não demoraria para que Bolsonaro fosse em busca de capitalizar com tal "incidente". Nas redes sociais, ele deixou claro que sempre esteve disposto a dialogar. Nos bastidores, seus diplomatas repetiram a mesma mensagem.

CARL DE SOUZA/AFP CARL DE SOUZA/AFP

Segunda-feira, 26 de agosto: internacionalizar a Amazônia?

Chegava então o momento do debate no G7 em Biarritz sobre a crise e, em seguida, o anúncio do pacote. Mas o ambiente uma vez estava contaminado.

Na noite anterior, o presidente havia chancelado um comentário de um internauta que zombava da primeira-dama da França e a vulgaridade do governo passou a fazer parte dos debates.

Mas Piñera, 8.000 quilômetros de distância dali, continuava a trabalhar por um acordo: queria garantias de que todos estavam no mesmo tom conciliador.

Antes mesmo de o encontro começar, Piñera trataria da situação com Merkel. O assunto ainda fez parte de encontros do secretário-geral da ONU, António Guterres, e do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

Enquanto isso, o Brasil aguardava por notícias, já insinuando nos bastidores que o assunto estaria perdendo força diante da ação do Chile e da recusa do governo de Trump de sequer participar da reunião dedicada ao clima no G7.

De seu gabinete, o chanceler Ernesto Araújo decretou uma ordem para que todos os embaixadores brasileiros pela Europa suspendessem suas férias e voltassem imediatamente aos postos nas capitais do Velho Continente. Em pleno mês de férias de verão na Europa, a crise pegou diversas embaixadas semivazias.

Macron: 'Que os brasileiros tenham logo um presidente à altura do cargo'

Quando a reunião do G7 começou, ficaria claro que os países anunciaram um pacote de ajuda imediato. Mas também seria estabelecido que a questão estrutural da preservação da floresta seria deixada para uma reunião na ONU, no próximo mês. O Chile ficaria com o papel de coordenador dessa gestão e Piñera subiria ao palco ao lado de Macron para, numa conferência de imprensa, colocar fim à crise.

"Estamos muito contentes por termos chegado a um acordo com os países amazônicos, Brasil, Peru, Bolívia, Paraguai e muito mais, e com o G7, para colaborar com os países amazônicos para combater os incêndios", anunciou o chileno, com orgulho.

Mas aquele não era o fim da crise. Macron, saindo do script, insinuou que o dinheiro e as ações poderiam ser tomadas ao lado de ONGs europeias, deixando o governo brasileiro desconfiado de que o plano não era o mesmo que havia ouvido de Piñera.

O que fez o copo transbordar, porém, foi a insinuação do presidente da França de que o "status internacional" da Amazônia continuava sobre a mesa, uma linha vermelha que a diplomacia brasileira e que militares jamais aceitaram debater.

Não ajudou em nada o fato de que Macron sugeriu aos brasileiros mudar de presidente e de qualificar como "triste" o comportamento de Bolsonaro em relação à sua mulher.

E a crise que parecia resolvida ganhava nova força. Já na madrugada de terça-feira, na Europa, o Brasil anunciaria que não receberia o dinheiro da ajuda. Salvo se houvesse um pedido de desculpas por parte de Macron.

A crise ambiental havia se transformado numa crise diplomática, com um incêndio que poucos ousam prever quando poderá ser resolvido.

Odair Leal/Folhapress Odair Leal/Folhapress
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