De 1 a 101.000 casos

Do isolamento à reabertura, mudança no discurso oficial em SP é posta à prova

Arthur Sandes, Cleber Souza, Felipe Pereira, Gabriela Sá Pessoa e Marcelo Oliveira Do UOL, em São Paulo Miguel Schincariol/Getty Images

Capacidade de lidar com o vírus definirá o novo normal

A pandemia de covid-19 atingiu um estágio em São Paulo em que os doentes são contados aos milhares. Hoje, o estado já ultrapassa 101 mil casos confirmados. São muitos dígitos, mas o estado se encaminha para a retomada de parte de atividades. As cidades vão experimentar o tal novo normal.

As pessoas que irão às ruas não são mais as mesmas. Um vírus condenou o direito de ir e vir de milhões. Cada um reagiu conforme sua personalidade: medo, raiva, indiferença, ansiedade e etc. —ou tudo isso junto.

A sensação de muitos é que se passou muito tempo desde o começo da crise. Em 17 de março, a primeira morte anunciava que o novo coronavírus estava entre os brasileiros e que usou a cidade de São Paulo como porta de entrada. A covid-19 chegou escancarando problemas.

A desigualdade social fez estragos na periferia. O sistema de saúde entregava laudos de testes in memoriam. O resultado saía depois que o paciente morreu. Ainda há pessoas reclamando da falta de exames de covid-19.

Entre erros e acertos, o governo estadual anunciou um plano de flexibilização da quarentena que começa na próxima segunda. O ritual de reclamações se repetiu. A crise persiste: um remédio ou vacina não foram descobertos.

É certeza que mais casos virão. Será a capacidade de lidar com esta realidade imposta que responderá se 100 mil serão o ápice da pandemia no estado, e o início do novo normal, ou se voltaremos a escalada da doença e à quarentena.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF
Cynthia Rocha/Prefeitura de São Vicente

Novo coronavírus se espalhou por seis eixos rodoviários

As rodovias Anhanguera e a Dutra foram os principais eixos rodoviários de propagação do novo coronavírus no estado. Dos mais de 86 mil casos confirmados de covid-19 em São Paulo, 92% foram registrados em cidades distantes até 20 km das principais rodovias do estado. Estudo da Unesp (Universidade Estadual Paulista) mostra que a doença se propagou pelo interior através das estradas, indo das cidades maiores, com maior densidade populacional, para as menores, por meio de polos regionais.

Além da Anhanguera e da Dutra, os outros quatro eixos mais importantes na difusão da doença foram a Castelo Branco, Washington Luiz e Cândido Rondon e o sistema Anchieta-Imigrantes.

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Alan Morici/AGIF Alan Morici/AGIF

O discurso oficial em três momentos da pandemia

Divulgação/Governo de São Paulo

#FiqueEmCasa

O "fique em casa" virou um slogan no primeiro momento e o foco era o isolamento social. Especialistas falavam em adesão mínima de 70% para os hospitais não entrarem em colapso. O coordenador de Controle de Doenças da Secretaria estadual de Saúde, Paulo Menezes, explicou que os hospitais não estavam preparados para alta da demanda. Ficar em casa era a única forma de diminuir o contágio e dar tempo para abrir leitos.

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Ettore Chiereguini/AGIF/Estadão Conteúdo

Ocupação de UTIs

Na virada de abril, a atenção se voltou para a taxa de ocupação dos leitos de UTI. Menezes disse que a ênfase nesta informação ocorreu porque ela reflete a proximidade do sistema de saúde não conseguir mais atender a demanda. Chegou perto de 90% na região metropolitana e agora cai aos poucos. A fim de reforçar a rede de atendimento, o governo do estado comprou respiradores e inaugurou hospitais de campanha.

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Ettore Chiereguini/AGIF

Flexibilização

Na última quarta, o governo flexibilizou a quarentena em 15 regiões de São Paulo lançando luzes sobre cinco indicadores de saúde: taxa de ocupação de leitos, leitos por 100 mil habitantes, número de casos, de internações e óbitos. O coordenador de Controle de Doenças explica que combinação dos últimos três itens permite conhecer o momento da doença. A combinação permite projetar o que vai acontecer.

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O governador e a taxa de isolamento

Ao longo da pandemia, João Doria adotou diferentes tons sobre o índice

Ricardo Matsukawa/UOL

Máscaras reduziram mortes

São Paulo chegar a mais de 100 mil casos de covid-19 foi algo que o Instituto Butantan previu em estudo logo no começo do mês. O mesmo trabalho estimou entre 9 mil e 11 mil mortes até este domingo. Contudo, foram 7.275 óbitos até ontem.

Ainda não há pesquisas conclusivas para explicar a causa de o número de mortes ser menor, mas a obrigatoriedade do uso de máscaras é apontada como principal possibilidade, afirmou Paulo Menezes, coordenador de Controle de Doenças da Secretaria estadual de Saúde. O uso do equipamento de proteção se tornou obrigatório em 7 de maio e coincide com uma estabilização no número de óbitos. O raciocínio é que a lei que determinou utilização de máscaras freou a transmissão da covid-19.

A pergunta automática é: como então a estimativa de casos se confirmou? Menezes declarou que houve um aumento da testagem, principalmente testes rápidos distribuídos por municípios. A progressão de casos confirmados se materializou, mas com a identificação de casos mais leves que não evoluíram para internações. O cenário do começo de maio, no qual o estudo se baseou, era de fazer exames somente em quem dava entrada nos hospitais.

Aparentemente, o impacto positivo no número de mortes aconteceu pelo uso de máscaras, foi algo que pegou com a população, a ampla maioria usa. Como é uma doença por transmissão respiratória, a máscara contribuiu para diminuir as transmissões e as mortes.

Marcos Boulos, infectologista da Superintendência do Controle de Endemias de São Paulo (Sucen-SP)

O confinamento teve um resultado extremamente importante. Nós calculamos uma redução enorme do pico da doença, diminuição de caso e mortes. Sem isolamento nós teríamos neste momento boa parte da população infectada, a doença começaria a ir embora, mas com um custo altíssimo de vidas. Isso não ocorreu.

Marcos Boulos

Reuters Staff Reuters  Staff
Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Um desafio para profissionais de saúde

Profissionais que atuam em diversas regiões do estado costumam dizer: não se trata de uma situação comum. Em primeiro lugar, vem o medo de se contaminar, não muito distante das longas horas de trabalho. "São horas diárias a mais por semanas seguidas, gerando um cansaço crônico. Você chega em casa e continua com a cabeça na pandemia. Tenta fazer coisas para esquecer, mas sonha com o hospital. A doença vira o seu dia", relata Anna Morais, pneumologista no Hospital das Clínicas.

O medo de levar o novo coronavírus para casa também acomete a enfermeira do hospital Nova Cachoeirinha Sandra de Souza Araújo. "Pedi para se distanciarem e minhas filhas falaram que tomariam os cuidados para podermos estar juntas." Na pandemia, tudo é estranho, diz.

A covid-19 é descrita como uma "doença traiçoeira" por Erika Garozzo, que atua como clínica geral em dois hospitais. "Meu papel é não me deixar enganar pelo coronavírus, perceber que a doença vai evoluir. Eu anoto os nomes dos pacientes que atendi. Quando volto ao hospital, olho no sistema como evoluiu. A gente se preocupa. Mas, até agora, tive mais notícias boas do que ruins nesta checagem."

O que foi feito no HC é histórico, muito positivo. Distribuir os pacientes de um instituto com 800 leitos e transformá-lo em exclusivo para covid-19 é muito positivo, foi o grande acerto. E os hospitais de campanha também. Por outro lado, deveria ter bloqueado as saídas durante os feriados. Aliás, em vez dos feriados deveria ter sido feito um lockdown, com mais dias e em toda a Grande São Paulo.

Paulo Lotufo, professor de epidemiologia da USP (Universidade de São Paulo)

Rodrigo Paiva/Getty Images Rodrigo Paiva/Getty Images

A doença e a periferia

Todos os 20 bairros onde mais pessoas morreram por covid-19 na cidade de São Paulo estão nas regiões periféricas da capital. Até quinta-feira (20), 2.564 moradores desses bairros morreram de síndrome respiratória, com suspeita ou confirmação do novo coronavírus. A cidade inteira soma 6.505 óbitos suspeitos ou confirmados, de acordo com dados da quinta-feira (21).

Afetados por uma pandemia que expõe a desigualdade social na capital, moradores de regiões periféricas preocupam-se com a dificuldade em conseguir testes, algo que fala mais alto do que o otimismo de seus governantes ao falar sobre a reabertura. Além da falta de exames para pacientes com sintomas e suspeita de covid-19, o protocolo das unidades de saúde para o procedimento também confunde a população.

Você vai ao pronto-socorro e não tem teste. Na UBS, idem. Poucas farmácias estão com testes rápidos, e custam caro. Aí colocaram que estou com suspeita, fiquei desesperada. Tenho dois filhos pequenos e uma mãe de 76. Vou infectar minha família?

Marília Pereira, moradora do Grajaú

Levei minha filha até a UBS porque me disseram que lá havia testes. Só me deram atestado de sete dias. Com sintomas de covid-19, ela foi medicada com dipirona. A recomendação é que, se por acaso sentir falta de ar, procurar um hospital.

Maria Hilda, moradora do Grajaú

Me senti mal por não receber cuidados no início dos sintomas [dores no peito e perda de olfato e paladar]. Tive que ouvir 'você é nova, não está no grupo de risco, então não farei o teste, é só para casos de internação' dos médicos do Hospital Geral do Grajaú.

Ana Caroline Lima Carvalho, moradora do Grajaú

Meu marido não conseguiu fazer o teste em Campinas, onde trabalha. Voltou, foi ao posto, mas não tinha médico. Nos 14 dias em que ficou isolado, a pressão dele subiu e ele foi parar no Hospital de Parelheiros. Só deram remédio para a pressão, e pediram para continuar isolado. Já está acabando o isolamento e ele vai ter de voltar ao trabalho

Viviane Vicente, moradora do Grajaú

O médico não fez nenhum exame. Tenho febre, tosse e estou sem paladar. Somente me recomendou ficar isolado. Quem tem convênio busca esse serviço para ter um diferencial. No entanto, não tem diferença entre hospital público e privado. Se o atendimento deles for igual ao que tive da primeira vez, com certeza irei a óbito.

Sandro Silva, morador do Grajaú

Amanda Perobelli/Reuters Amanda Perobelli/Reuters
Alexandre Schneider/Getty Images

Discordâncias sobre reabertura

Por semanas, as ruas foram tomadas por carreatas que pediam o fim do isolamento social e criticavam o governador. Paralelamente a isso, prefeitos mantiveram reuniões semanais com o Comitê de Contingenciamento ao longo da quarentena. Nas reuniões, tradicionalmente às segundas-feiras, os gestores de dividiram em dois grupos: os que defendiam, principalmente no interior, o relaxamento nas medidas de distanciamento social e os que eram favoráveis a restrições duras. As discordâncias persistiram no anúncio da reabertura. Prefeitos da Região Metropolitana questionaram os critérios que mantiveram seus municípios fechados, enquanto a capital foi autorizada a reabrir.

Pedimos que o governador olhe para o estado com uma visão mais ampla, e não com a visão da capital.

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Jonas Donizette (PSB), prefeito de Campinas e presidente da Frente Nacional dos Prefeitos, em 6/5

A tragédia está anunciada se não tiver uma atitude rápida, responsável e corajosa, que é o lockdown.

Gabriel Maranhão (PSDB), prefeito de Rio Grande da Serra e presidente do Consórcio ABC, ao UOL em 15/5

Se é para seguir a ciência, quero que prove por que São Paulo [capital] pode sair da quarentena.

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Orlando Mornado (PSDB), prefeito de São Bernardo do Campo, em 27/5, após o anúncio do plano de reabertura

O estado tratou por mais de 60 dias de maneira igual os desiguais. Agora, vem a etapa inteligente [da quarentena], eu acho que é a etapa consciente.

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Duarte Nogueira (PSDB), prefeito de Ribeirão Preto, após reunião com o governador sobre relaxamento da quarentena em 26/5

Aqui na região, a pressão é muito grande do comércio, dos trabalhadores. Temos apreensão pela falta de trabalho, algumas empresas não aguentam mais.

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Dilador Borges (PSDB), prefeito de Araçatuba, após reunião com o governador sobre relaxamento da quarentena em 26/5

O que vai determinar [a abertura] não é a política, mas a ciência: o percentual de leitos de UTI ocupadas, a curva de contaminação e a capacidade de testagem.

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Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), prefeito de Santos, em entrevista ao vivo ao UOL em 21/5

Em São Paulo a coisa começou muito bem, unificada, o governador à frente e ouvindo a equipe técnica. Mas considerar a capital na cor laranja e o restante da Grande São Paulo em vermelho, eu acho um enorme erro. Porque é praticamente a mesma coisa: há lugares em que você atravessa a rua e entra em outra cidade. Este é um dos maiores problemas, e espero que seja revertido. Além de entrar [na capital] para trabalhar, já imaginou as pessoas indo para fazer compras em shoppings?

Paulo Lotufo, professor de epidemiologia da USP (Universidade de São Paulo)

Pontos altos

Eduardo Valente/Framephoto/Estadão Conteúdo

Testagem rápida

A expansão de exames começou em 15/05 na capital com integrantes das forças de segurança, profissionais de saúde e idosos. Foram comprados 2 milhões de exames ao custo de R$ 114 milhões. A intenção é chegar a um nível similar a Itália e Espanha.

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Avener Prado/UOL

Leitos de UTI

São Paulo foi um dos estados que mais expandiram a rede para atendimento. Na capital, ao menos cinco hospitais privados cederam leitos de UTI e há quatro hospitais de campanha, no Pacaembu, no Anhembi, no Ibirapuera e em Heliópolis, totalizando 2.440 leitos.

Getty Images

Achatamento da curva

O Instituto Butantan estimou no começo do mês cerca de 100 mil casos no estado, o que se confirmou pelos dados de ontem. Porém, a projeção de mortes se mostrou maior do que a projeção: se a estimativa era de entre 9 mil e 11 mil mortes, hoje são 7.275.

Pontos baixos

iStock

Respiradores chineses

A intenção era comprar 3.000 respiradores da China, mas o pedido foi repactuado para 1.280. Os equipamentos saíram por US$ 40 mil (R$ 220 mil) a unidade, valor acima do mercado, o que provocou a abertura de investigações por parte do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado.

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PAULO GUERETA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Reabertura na capital

Prefeitos da Grande São Paulo se revoltaram com a liberação para reabertura dos comércios na capital após pressão do prefeito Bruno Covas (PSDB). Pelos critérios da gestão, a cidade não se enquadraria. Mesmo aliados de Doria cobraram isonomia na decisão.

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Arte/UOL

Aulas online

Cerca de metade do contingente de estudantes da rede pública -- 1,5 milhão dos 3,7 milhões de estudantes -- não consegue acessar as aulas de suas casas. O estado ainda enfrenta queixa de professores sobrecarregados e de evasão por parte de alunos da Escola de Jovens Adultos.

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