Diário de uma repórter: Quatro dias de convívio com o ebola
A repórter da BBC especializada em saúde global Tulip Mazumdar está em Serra Leoa, um dos países mais atingidos pela epidemia de ebola, que já infectou mais de 7 mil pessoas e matou mais de 3,3 mil.
O país, como outros do oeste da África, não conta com uma boa infraestrutura de saúde. Serra Leoa tem uma população de 6 milhões de pessoas, mas apenas 136 médicos, 1.017 enfermeiros e parteiras e 114 farmacêuticos, de acordo com o site do Serviço de Informações sobre Saúde e Desenvolvimento Humano e Social da África.
Leia o relato da jornalista em meio à devastação causada pela doença.
Primeiro dia: Bem-vindos a Freetown
Está muito escuro quando chegamos ao aeroporto de Lunghi, por volta da 1h da manhã, e a chuva é pesada. A viagem de Londres para cá, que antes da epidemia durava seis horas, agora demorou 20 horas. Nenhuma companhia aérea está fazendo voos diretos da Grã-Bretanha para Serra Leoa, então tivemos que parar em Paris e Casablanca.
Na chegada, antes de irmos para o prédio principal do terminal, somos levados para dois contêineres vermelhos, cheios de cloro. Todos, silenciosamente, lavam as mãos antes de entrar. Imediatamente recebemos uma "declaração de saúde", um formulário com perguntas como onde estivemos nas últimas oito semanas, se estamos com febre, diarreia ou vômitos.
Também recebemos um folheto explicando o que é o ebola e como é o contágio. Cartazes semelhantes estão espalhados pelo saguão de chegada.
Passamos pela imigração e, antes de pegar a bagagem, somos parados novamente por homens com luvas e jalecos brancos. Um deles sorri e então colocada um termômetro a poucos centímetros de minha cabeça. "36,5 graus: você pode passar", disse.
Encontramos nosso motorista e, instintivamente, estendo a mão para cumprimentá-lo, mas recuo imediatamente. Ele sorri e bate no peito, este é o novo aperto de mão em Serra Leoa. "Bem-vindos a Freetown", disse.
Segundo dia: Os coveiros
Hoje estamos filmando no principal hospital de referência do país, o hospital Connaught, no centro de Freetown. Quando entramos, vejo uma mulher deitada em um banco, com a cabeça entre as mãos, ela parece muito mal. Esta área é onde estão os pacientes com sintomas de ebola, mas a ajuda aqui é limitada.
Não é um centro de tratamento, é uma enfermaria de isolamento dentro do hospital. As pessoas viajam muitos quilômetros a partir daqui, de ambulância, para conseguir o tratamento adequado. Existem apenas 18 leitos neste hospital e estão todos lotados.
O último paciente a chegar é um bebê de um mês, cujos pais morreram devido à doença durante a noite. Ele também pode estar infectado e pode morrer em alguns dias. Tudo o que se pode fazer é alimentá-lo e pegá-lo no colo, usando roupas especiais para proteção.
Quando estamos saindo do hospital, um caminhão preto estaciona. Uma equipe chega para retirar dois corpos e sepultá-los no cemitério próximo. Seguimos o carro fúnebre improvisado até o cemitério.
Uma área inteira está isolada e reservada apenas para as vítimas do ebola e casos suspeitos. Entrar aqui é estranho e trágico. Há centenas de sepulturas, a maioria recente, com montes frescos de lama em cima. Uma ou duas têm uma cruz ou brinquedos de crianças. A maioria não tem nada. O que é marcante é a escala: 400 corpos foram sepultados aqui em uma questão de semanas.
A equipe de sepultamento é eficiente e quase jovial. Imagino que seja a única forma para que eles consigam trabalhar com isto todos os dias.
O supervisor do cemitério, Abdul Rahman Parker, conta que foi isolado pela comunidade. As pessoas os temem pois ele lida com os corpos das vítimas do ebola. Mas ele diz que não se importa e que o país precisa que ele continue trabalhando.
O dia termina com as equipes de sepultamento jogando as roupas de proteção na última cova: máscaras, luvas e macacões. Começou a chover de novo. Tiramos nossas roupas de proteção e colocamos em um saco amarelo, especial para conter risco biológico, passamos um spray com desinfetante e voltamos para o hotel.
Terceiro dia: Desespero e esperança
Ficamos sabendo sobre uma pequena organização não governamental italiana chamada Emergency que, recentemente, estabeleceu um novo centro de tratamento nos arredores da capital, então vamos para lá.
Quando estacionamos, vemos várias pessoas parecendo bravas e desesperadas. Mantivemos a distância e perguntamos, aos gritos, o que está acontecendo.
"Meu irmão Francis está doente e eles não o aceitam neste centro. Falam que está lotado. O que devemos fazer? Fomos de hospital em hospital o dia todo e ninguém o aceitou."
Espio dentro do carro, Francis está no banco do passageiro, olhar distante. Os olhos dele estão vermelhos e ele está com sintomas claros do ebola. Depois de quase uma hora tentando, a família desiste. Os cinco voltam para o carro e vão embora. Todos no carro agora correm o risco de contrair a doença.
Quando entramos no centro de tratamento, sinto o desamparo e a frustração que a família deve ter sentido e exijo saber a razão de Francis não ter sido atendido. O coordenador do centro, Luca Rolla, me conta que a prioridade tem que ser os funcionários e os pacientes que eles já estão tratando. Ele disse que eles não podem ir além da capacidade pois arriscariam a segurança dos outros no centro. Um dos médicos já contraiu o vírus e está sendo tratado na Alemanha.
Luca anotou os detalhes da família e, se um leito ficar disponível em qualquer lugar em Freetown ou arredores, ele entrará em contato.
Ele disse que, no momento, o que eles precisam é de mais funcionários de saúde de outros países e treinamento para os funcionários locais. E mais centros de isolamento. Até que isto aconteça, ele afirma que terá que recusar pacientes sabendo muito bem de todos os riscos da volta destes pacientes para suas comunidades, de infectar ainda mais pessoas.
Enquanto filmamos, o telefone de Luca toca, ele atende, sorri e nos chama. Luca recebeu a notícia de que um leito ficou disponível em outro centro para a família que ele acabou de recusar. Ele liga para eles imediatamente e fala para todos irem direto para lá.
Então, vimos outro lampejo de esperança. Três meninas estão sentadas, pacientemente, em bancos, vestindo túnicas da mesma cor. Elas sobreviveram ao ebola e irão para casa.
Quarto dia: Ao vivo, da linha de frente do ebola
Começamos cedo para editar o material que filmamos nos últimos dias.
Montamos as câmeras no topo de nosso hotel para a entrada ao vivo. Tentar fazer um relato ao vivo do lado de fora do hotel é muito mais arriscado devido ao nível de contaminação do ebola no país. Não queremos multidões à nossa volta. Nosso assessor para biossegurança, Mark, checa se o lugar é seguro e então nos estabelecemos.
Os últimos dias foram muito movimentados, mas enquanto me apronto para a primeira transmissão ao vivo, tenho um momento para olhar para trás e apreciar a bela cidade. Vejo colinas cobertas de florestas em volta do Oceano Atlântico. A calma não dura muito tempo, as nuvens aumentam e uma tempestade se aproxima.
Depois de alguns problemas devido à chuva pesada e trovoadas, nosso sinal de satélite volta.
Então, pouco antes das 18h, e antes de mais uma entrada no canal BBC World, Mark chega com péssimas notícias. Francis Samuka, que foi rejeitado no centro de tratamento italiano no dia anterior na nossa frente, morreu.
A família ligou e disse que ele morreu em outro centro de isolamento há algumas horas. A irmã mal conseguia falar quando deu a notícia. Meu coração fica apertado... e então escuto o apresentador no fone de ouvido: "Tulip, quais são as últimas notícias?"
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