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A mulher cujos ossos se multiplicam dentro do corpo

A mãe de Jeannie Peeper ainda se emociona ao lembrar que a filha tinha apenas cinco anos quando os médicos disseram que a menina não chegaria à adolescência - BBC
A mãe de Jeannie Peeper ainda se emociona ao lembrar que a filha tinha apenas cinco anos quando os médicos disseram que a menina não chegaria à adolescência Imagem: BBC

26/03/2017 09h42

"Meu corpo produziu um esqueleto adicional". Jeannie Peeper resume assim sua estranha doença: um problema genético que promove o desenvolvimento de ossos adicionais em locais onde deveria haver músculos e outros tecidos moles.

Desde cedo a mãe notou que Jeannie, carinhosamente apelidada de Pipa, não era como os outros filhos: a menina não conseguia abrir a boca como os irmãos e começou a sofrer inflamações na parte posterior da cabeça aos três meses.

Preocupados, os pais a levaram a médicos especialistas em ossos.

"Ela tinha cinco anos quando nos disseram que ela não chegaria à adolescência", conta a mãe da mulher que hoje tem 59 anos.

"Meu marido e eu não sabíamos o que fazer", emociona-se a mãe ao recordar a fase difícil.

Mas Jeannie acabou passando a primeira infância como qualquer outra criança.

"Eu não sabia que tinha um problema até completar oito anos. Lembro perfeitamente que acordei um dia de manhã e não conseguia movimentar a mão esquerda."

Uma pessoa em cada dois milhões

Jeannie sofre de fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP), doença genética extremamente rara, que afeta uma pessoa em cada dois milhões.

"Nossos ossos estão constantemente crescendo e consertando a si próprios. Na verdade, nosso corpo renova o esqueleto totalmente a cada dez anos", explica a médica Gabriel Weston, que apresenta a série de TV da BBC Incredible Medicine (medicina incrível, em tradução livre).

No caso de Jeannie, porém, tal processo está desequilibrado: alguns tecidos de seu organismo, como músculos e tendões, se calcificam e se transformam em osso.

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Jeannie teve uma infância normal até os oito anos de idade
Imagem: BBC

Por isso, qualquer pancada é um perigo para ela - enquanto pessoas comuns ficam com marcas roxas que depois desaparecem, o corpo de Jeannie reage diferente e faz com que cresça um osso sobre outro já existente.

Estas ossificações aparecem nas articulações em locais onde não deveriam estar, fazendo com que o corpo dos doentes fique cada vez mais rígido.

Rara, mas não a única

Jeannie preferiu não se acomodar na doença. Em 1987, procurou entrar em contato com outras pessoas que sofrem de fibrodisplasia ossificante progressiva.

Assim, criou uma comunidade de pacientes que compartilhavam as mesmas questões: queriam saber por que seus corpos eram diferentes e se haveria alguma cura. Eles então procuraram um especialista com respostas e acabaram encontrando um médico que precisava justamente de pacientes para estudar a doença.

Fred Kaplan é um cirurgião ortopédico da Filadélfia, nos Estados Unidos, que se interessou pela fibrodisplasia ossificante progressiva desde o começo da sua carreira médica.

"A FOP é a pior e mais catastrófica doença com a qual me deparei em todos meus anos de formação e residência médica. E não podia fazer nada a respeito", disse Kaplan à BBC.

Foi assim que o cirurgião decidiu dedicar sua vida profissional à investigação dessa rara enfermidade.

Uma pista no dedão do pé

Kaplan visita com frequência o museu Mutter da Filadélfia (EUA) para observar o esqueleto de Harry Eastlack, o paciente com FOP mais conhecido da Medicina, que morreu em 1973, aos 39 anos, e doou seus ossos à ciência.

"Cada vez que vou lá, aprendo algo novo", afirmou Kaplan.

Para poder investigar possíveis causas do transtorno, o médico precisava estudar o maior número possível de pacientes, e o grupo de apoio criado por Jeannie surgiu como oportunidade única.

"Todos os pacientes que vi tinham uma má formação no dedão do pé. O interessante é que esse dedo é a última parte do esqueleto que se forma no embrião", conta Kaplan.

"É como se o corpo chegasse ao final do processo de formação do esqueleto, não fizesse direito essa parte e então decidisse formar um segundo esqueleto", diz o médico.

Análises de ossos de pacientes com FOP mostram que todos têm uma quantidade excessiva de uma proteína envolvida na criação dos ossos.

A produção dessa proteína é determinada pelos genes. Por isso os pesquisadores começaram a considerar que a doença pudesse estar relacionada a um problema genético.

Conexão inimaginável

Revendo a bibliografia médica existente, Kaplan encontrou um estudo que identificava um gene como o causador de uma doença semelhante, mas em galinhas.

Kaplan estava convencido de que tinha que fazer uma conexão entre aquelas duas enfermidades.

Ele decidiu então examinar o DNA de seus pacientes, para ver se eles apresentavam problema no mesmo gene.

"É o típico momento 'eureca' com que todos os cientistas sonham, mas que poucas vezes se concretiza", disse Weston, apresentadora da BBC.

Mas daquela vez Kaplan encontrou exatamente o que procurava: o mesmo erro nos genes de todos seus pacientes.

"Era como um único erro de ortografia em todo o código genético", resume Weston.

"Uma letra entre seis bilhões. Isso não é uma agulha no palheiro, mas é uma agulha em seis bilhões de palheiros", compara o médico.

"Foi uma descoberta incrível, que mudou tudo", reconhece o pesquisador.

'Não podia acreditar naquilo'

Uma das primeiras pessoas que Kaplan chamou para dar a notícia foi Jeannie Peeper.

"Eu estava feliz, não podia acreditar naquilo", lembra Jeannie.

"Disse a ele que aquele era o maior presente - a descoberta do gene durante o transcurso da minha vida", continua.

"Acho que ela estava chorando do outro lado do telefone", disse o médico.

Segundo Kaplan, teria sido impossível estudar a doença sem a ajuda de Jeannie.

Graças à determinação de Kaplan e Jeannie houve um grande avanço na compreensão de uma doença muito complexa, e em um intervalo muito curto de tempo.

Embora não haja uma perspectiva de cura, descobrir um tratamento efetivo para a FOP seria apenas o início de muitos avanços médicos. O trabalho de Kaplan pode ser a chave para o desenvolvimento de tratamentos de problemas comuns dos ossos, como fraturas e osteoporose.

"Frequentemente pensamos que as doenças comuns nos ajudam a entender as raras, mas na verdade é o contrário: são as raras que nos ajudam a entender as comuns", disse Kaplan.