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Coronavírus: por que o Peru não consegue conter a covid-19, apesar de quarentena e investimentos

Muitas pessoas tiveram que sair para abastecer suas casas com frequência ou para trabalhar - Reuters
Muitas pessoas tiveram que sair para abastecer suas casas com frequência ou para trabalhar Imagem: Reuters

Pierina Pighi Bel

BBC News Mundo

25/05/2020 15h20

Em números absolutos, o Peru é o segundo país da América Latina com mais casos de covid-19, atrás apenas do Brasil. O que explica isso, considerando que o país foi um dos primeiros na região a impor quarentena?

O Peru foi um dos primeiros países da América Latina a colocar seus cidadãos em quarentena para tentar conter a disseminação do novo coronavírus.

Em 16 de março, o governo decretou estado de emergência sanitária, fechou as fronteiras, ordenou que as pessoas saíssem apenas para tarefas essenciais, como comprar alimentos e remédios, e decretou toque de recolher em momentos diferentes em todas as cidades.

Desde então, a quarentena foi estendida cinco vezes. O presidente, Martín Vizcarra, anunciou na sexta-feira (22/05) a extensão mais recente e mais longa da quarentena (e da emergência sanitária), que ficará em vigor até 30 de junho. Ao mesmo tempo, algumas atividades econômicas serão retomadas.

Muitos especialistas e cidadãos peruanos aplaudiram em março a rapidez das medidas e os pacotes econômicos para ajudar as pessoas afetadas pela paralisia da economia.

Até agora, 80% dos cidadãos aprovam a gestão de Vizcarra, de acordo com uma pesquisa realizada em maio pela consultoria Ipsos Apoyo.

No entanto, pouco mais de dois meses após o início das restrições, o Peru é o segundo país da América Latina com mais casos de covid-19 em termos absolutos depois do Brasil, de acordo com a Universidade Johns Hopkins, que monitora o progresso da pandemia no planeta.

Segundo dados desta segunda-feira (25), o Peru já havia registrado 119.959 casos de covid-19 e 3.456 mortes. Os novos números colocam o Peru como o país da América do Sul com maior número de casos de covid-19 per capita.

Esse cenário é explicado, em parte, porque o Peru aplicou mais testes de rastreamento de covid-19 que outros países da América Latina com uma população maior. Até sexta-feira, o Peru havia coletado 750.526 amostras, enquanto até quinta-feira o México havia feito 193.589, por exemplo. Até quarta-feira, a Colômbia havia realizado 214.536 testes. Já o Brasil se aproximava dos 500 mil testes feitos.

Mas isso não explica, por si só, o maior número de casos no Peru ou o fato de o governo não ter achatado a curva de contágio tanto quanto gostaria.

Especialistas consideram que alguns problemas preexistentes da economia e da sociedade peruanas ajudam a entender por que o país ainda não conteve o surto.

Veja, a seguir, cinco fatores:

1. Informalidade

Muitos peruanos concordaram em limitar suas saídas de casa, disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Hugo Ñopo, principal pesquisador do centro de pesquisa peruano Grade.

Mas as condições econômicas e a obrigação de ir a lugares lotados, entre outras circunstâncias, impediram o objetivo mais importante da luta contra o novo coronavírus: maximizar o distanciamento social.

Cerca de 71% da população ativa no Peru vive da economia informal ou trabalha com atividades em que obtém sua renda dia a dia.

"Estamos falando de famílias onde a renda é diária e, portanto, sua logística operacional também é diária", diz Ñopo.

"Os peruanos que tiveram de sair para trabalhar (nos setores formal e informal) foram a estações de transporte, ou os peruanos que foram fazer compras (ou vender) foram a mercados muito movimentados, onde a distância não foi respeitada", diz Ñopo.

"Então, minimizamos as saídas, mas esquecemos de maximizar a distância social. Parte dos contágios se deve a isso", acrescenta.

2. Logística para abastecimento

Uma das dificuldades que explicam essa necessidade de sair com frequência é o fato de que apenas 21,9% das famílias pobres no Peru têm uma geladeira (ou seja, pouco mais de uma em cada cinco famílias pobres), de acordo com a última Pesquisa Nacional de Famílias do Peru, de 2019.

Essas casas "não contam com logística que lhes permita estocar alimentos por muitos dias", disse Ñopo à BBC News Mundo. "Eles precisam sair para se abastecer com alguma frequência e principalmente ir até os mercados", acrescenta.

Muitas outras pessoas estão indo ao mercado com frequência porque em um país onde há o costume de comer produtos frescos.

"Não há um dia em que as pessoas não saiam para comprar um pouco de coentro, um pouco de cebola, os ingredientes para ceviche", disse o jornalista peruano Harry Gordillo ao podcast La Encerrona, no final de abril, sobre a situação no distrito onde ele mora na região de Lambayeque, o segundo com mais casos depois de Lima e Callao.

3. Aglomerações nos mercados

Os mercados foram identificados pelo próprio presidente Vizcarra como "os principais focos de contágio".

Por exemplo, no mercado de frutas La Victoria, em Lima, 86% dos fornecedores estavam infectados com a covid-19, segundo dados oficiais.

"Identificamos que os problemas estavam ocorrendo nas zonas de contágio mais concentradas, que eram os mercados. Dissemos: vamos trabalhar diretamente com os municípios para reverter a situação e estamos começando a ver os resultados", disse Vizcarra na semana passada. "Se não diminuirmos o nível de contágio nos mercados, não conseguiremos diminuir a infecção desta doença", acrescentou.

Pablo Lavado, professor de economia da Universidad del Pacífico, disse à BBC que muitas pessoas com renda mais alta também se aglomeram nos supermercados para estocar e consumir nos dias e horas em que os mercados fechariam, como feriados.

O pesquisador social peruano Rolando Arellano disse à BBC que "o horário restrito de abertura de mercados e armazéns (incluindo fechamentos durante o fim de semana) favoreceu a aglomeração".

Mas os mercados não foram as únicas fontes de contágio no Peru durante a pandemia.

4. Aglomeração nos bancos

Paralelamente às restrições, o Peru destinou entre 9% e 12% de seu PIB para ajudar as pessoas que perderam seus empregos (ou que trabalham por conta própria) e as empresas que perderam receita devido à pandemia.

Esses pacotes de ajuda fizeram do Peru um dos países latino-americanos que mais gastaram na luta contra a pandemia.

Uma das medidas foi o pagamento de 760 soles (cerca de US$ 222 ou R$ 1.215) para cerca de 6,8 milhões de famílias vulneráveis, pobres, extremamente pobres e com trabalhadores autônomos.

Mas apenas 38,1% dos peruanos adultos têm conta bancária, de acordo com o último relatório de inclusão financeira da Superintendência de Bancos e Seguros do Peru, de junho de 2019.

Embora o governo tenha oferecido opções virtuais para receber os pagamentos, muitos dos beneficiários tiveram que ir pessoalmente aos bancos para sacá-los e, portanto, formaram filas e aglomerações.

Vizcarra também reconheceu os bancos como um dos "pontos críticos" do contágio, junto com os mercados e o transporte público.

"Outro lugar [de contágio] são, como estamos fazendo os pagamentos, também os bancos. Lá também temos que melhorar a distribuição, a transferência de recursos, mas sem gerar as multidões que estávamos vendo", disse o presidente no dia 13 de maio.

Depois, o governo ampliou o horário de funcionamento de bancos, centros comerciais e farmácias.

Dessa forma, as pessoas "têm mais tempo durante o dia, então há menos concentração de pessoas", disse Vizcarra sobre a medida.

5. Superlotação em casa

Mas os peruanos não apenas tiveram que "sair" para lugares lotados. De acordo com a Pesquisa Nacional de Famílias de 2019, 11,8% das famílias pobres no Peru ocupam casas superlotadas, dificultando o distanciamento social em casa.

"Ou seja, [essas famílias] têm cinco ou mais pessoas vivendo em casas que não têm espaço para dormir, ou seja, apenas um quarto ou algo assim, ou que têm apenas um quarto para quatro ou mais pessoas", explica Ñopo.

Além desses problemas, Lavado, da Universidad del Pacífico, disse à BBC News Mundo que faltou implementar um sistema para rastrear contatos de pessoas infectadas.

Olhando para o futuro, Arellano acredita que é necessário "educar sobre as formas de cuidado e distanciamento dos cidadãos (responsabilizando-os por suas ações) e melhorar os sistemas de comércio, transporte etc., para facilitar a assepsia e o distanciamento".

O ministro da Defesa do Peru, Walter Martos, disse na sexta-feira que "a Polícia e as Forças Armadas não se cansarão de trabalhar nas ruas, mercados, bancos para ajudar a criar essa nova cultura de respeito às regras para aprender a conviver com o vírus".

Ñopo diz que em 16 de março, quando a quarentena começou, as medidas tomadas pelo governo foram "o melhor curso de ação, dadas as circunstâncias".

"O problema é que as condições em que nos encontrávamos já eram muito precárias", lamenta.

Sobre a extensão das restrições e a retomada paralela de certas atividades, Ñopo acredita que é "a coisa mais sensata" que pode ser feita.

"Esse vírus é desconhecido. O mais sensato é prolongar a quarentena por um longo período, porque ainda não sabemos como isso vai evoluir. Deixe quem pode ficar em casa ficar, mas precisamos começar a permitir que quem precisa trabalhar saia, porque existem muitas famílias incapazes de gerar renda ", diz ele.

"Mas é necessário transmitir mensagens claras, precisas e poderosas à população para maximizar a distância social", acrescenta.

No início de maio, Vizcarra disse que, como a covid-19 é uma doença nova, "o que poderia ter sido a melhor decisão há um mês, à luz dos resultados, requer os ajustes necessários para obter melhores resultados". Ele acrescentou que "isso não acontece apenas no Peru, mas em todo o mundo".

Ele também disse que "se os resultados não forem exatamente o que esperávamos, eles terão sido bons, dependendo do que foi evitado".