Despreparo do governo com vacina é perversidade, diz epidemiologista
Vergonha, preocupação, perversidade. Essas são algumas das palavras usadas pela epidemiologista Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), ao avaliar o planejamento do governo federal no combate à pandemia do coronavírus e a execução do plano nacional de imunização.
"O Ministério da Saúde está tendo uma postura ao contrário do que se esperaria de um governo para um momento como este. É um ministério militarizado, de pessoas no alto escalão que não têm experiência sequer de logística na área de vacinação. Ter experiência militar de logística não quer dizer que entende de vacina, como tem se visto", afirma a médica.
Enquanto mais de 50 países no mundo já iniciaram a vacinação, no Brasil não tem nenhuma vacina aprovada para distribuição e ainda há uma série de coisas a serem decididas para a execução do plano de imunização.
Azevedo cita uma série de ações relacionadas à logística, como garantia de insumos (seringa e agulha) e de uma rede de transporte refrigerado para o acondicionamento de doses em uma temperatura adequada, entre outros aspectos que caberiam ao governo federal organizar junto aos estados e municípios.
Ontem (6), após postergar a compra de seringas para a vacinação contra covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse hoje que o ministério suspendeu a aquisição do material "até que os preços voltem à normalidade".
"É uma vergonha, a essa altura, começar a pensar em como vai juntar seringa para todo mundo. O problema é a gente não ter uma resposta forte [por parte do governo], estruturada por uma equipe forte. É perverso, uma perversidade", afirma a médica, que também é professora do IMS/Uerj (Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
"A cada etapa havia uma solução. A cada etapa tinha uma nova condição de construir um futuro diferente - seja de vacinação, de compra de insumos, de logística - desde que houvesse planejamento com pessoas competentes."
Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco
A epidemiologista lembra ainda que o Brasil sempre teve um dos mais elogiados sistemas de vacinação do mundo por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). "Sempre chegou vacina a todos os lugares do país, sempre foi um programa estruturado", afirma Azevedo.
Agora, há "uma verdadeira desestruturação" no plano nacional de imunização, diz ela. Em 2019, primeiro ano de mandato de Bolsonaro, foi a primeira vez desde 1994 — desde quando há dados disponíveis — que o país não atingiu a meta de vacinar 95% do público-alvo em nenhuma das 15 vacinas do calendário público.
"É um desmonte que já vinha acontecendo. Se o governo tivesse mantido a experiência, seria mais fácil do que começar com algo que está completamente desestruturado", afirma a epidemiologista. "É o fato de não dar continuidade à experiência em vacinas acumulada por mais de quatro décadas, com um programa nacional que funcionava muito bem, articulado aos estados e municípios."
"Estamos começando o ano com 200 mil mortos [por covid-19] contados oficialmente. A preocupação é muito grande. O que nos deixaria esperançosos é que existem muitas pessoas competentes no Brasil que estão falando, que poderiam contribuir mais. Mas do jeito que está esse ministério...", lamenta Azevedo.
Contra a vacinação privada
Em meio a uma falta de decisão do governo, clínicas particulares começaram a se organizar sobre a possibilidade de importar doses da vacina. Azevedo se diz contra a iniciativa até que todos os grupos de risco estejam imunizados.
A Abrasco é signatária de uma carta de 50 associações que cobra ações do Ministério da Saúde para a garantia igualitária dos cidadãos brasileiros à vacina e contra a possibilidade de venda privada.
"A abertura da vacinação para clínicas privadas pode impactar negativamente o controle da pandemia, aumentar as desigualdades sociais na saúde e os riscos inerentes ao prolongamento da circulação do vírus na população" , diz o texto. "Somente o SUS, por intermédio do PNI, poderá garantir a vacinação de toda a população brasileira com base nesses critérios [epidemiológicos]."
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