Topo

'Somos excluídos': prevenção ao corona 'esquece' favelas sem saneamento

Caixas d"água em comunidade do Complexo do Alemão, na zona norte carioca - Tiê Vasconcelos/Voz das Comunidades
Caixas d'água em comunidade do Complexo do Alemão, na zona norte carioca Imagem: Tiê Vasconcelos/Voz das Comunidades

Lola Ferreira

Colaboração para o UOL, no Rio

17/03/2020 04h00

Lavar as mãos com água e sabão ou utilizar álcool em gel. Medidas simples contra o contágio do coronavírus, mas inacessíveis a uma parcela pobre da população. Moradores de duas favelas do Rio, onde esgoto a céu aberto e falhas no abastecimento de água são parte do cotidiano, relataram ao UOL preocupações ante o avanço do covid-19.

Para Raull Santiago, 31, fundador do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, conjunto de comunidades da zona norte carioca, a dificuldade de acesso a água potável deixa os moradores de favela "para trás" na corrida contra o vírus.

"Mesmo antes dessa pandemia, a gente já sofria com a violência histórica da desigualdade. Ter água encanada, acesso a água diariamente e outros direitos básicos nunca foi amplamente garantido a nós. A gente poupa água não apenas por conscientização ambiental, mas por necessidade, porque a gente sabe que se tem água hoje, só terá novamente daqui uma semana", relata Santiago.

O comunicador mora em uma casa com outras cinco pessoas, sendo quatro crianças. Ali, a água só "cai" (ou seja, chega às torneiras) duas vezes por semana e, em alguns dias, muito fraca.

Em uma pandemia em que se recomenda lavar as mãos sempre, como evitar a infecção? Raull narra que tenta a prevenção da forma que pode, mas que a família está exposta diariamente a focos de contágio e, sem o acesso devido à água, há muito medo.

"Fomos tomar a vacina do sarampo e nós moramos no alto da favela. Para descer e subir, temos que pegar a kombi, com 16 pessoas —idosos, crianças, adultos. O que temos feito é procurar informação, tentar reduzir o gasto de água e lavar a mão dentro do possível. Estamos evitando ao máximo a infecção, se um se contaminar, todos irão. Mas hoje temos mais dúvidas do que certeza em relação à prevenção da família", diz.

Raull também destaca a dificuldade em comprar álcool em gel, e não pela pouca disponibilidade do produto relatada por moradores de áreas mais nobres, mas por não ter dinheiro suficiente.

Prevenção para favelas

Na opinião dele, caberia ao município e ao estado investirem em dicas de prevenção que contemplem a pluralidade dos moradores do Rio. "É preciso que o governo e os especialistas em saúde pensem em dicas que respeitem e incluam as pessoas de favelas e periferias."

Da forma como está agora, nós estamos sendo excluídos, ignorados na realidade da expansão do vírus no Brasil, porque não consideram a realidade em que a gente vive, de extrema desigualdade.

Raull Santiago, 31, fundador do Coletivo Papo Reto

Para Edimilson Migowski, médico infectologista e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a situação de saneamento básico nas favelas junto ao avanço do coronavírus resultará em um cenário "muito grave".

"A água potável é fundamental para prevenção de qualquer doença infecciosa. Quando se reúne aglomeração, falta de ventilação e falta de condições mínimas para viver, aumenta o risco de doenças infecciosas", define.

Migowski destaca que não há solução a curto prazo a não ser tentar seguir as medidas de prevenção dentro do possível. "Quem mora em área de risco, sem saneamento, tem que redobrar a atenção, mais do que qualquer outro. Se fosse possível fazer isolamento em outros locais, melhor, mas também sabemos que é quase impossível", analisa.

O Instituto Trata Brasil, que analisa o saneamento básico nos municípios brasileiros há 13 anos, classificou com nota 6, de um máximo de 10, o município do Rio de Janeiro. É o 52º município de uma lista de cem. Não há registro de índice de saneamento básico por região.

Na última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, do IBGE, a capital fluminense ocupava a 228ª posição entre os 5.570 municípios brasileiros, no índice relativo ao amplo acesso a saneamento básico adequado.

Na favela de Acari, na zona norte do Rio, moradores também convivem com a falta de água. Além disso, eles temem a proximidade com o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, eleito pela prefeitura como unidade de referência para o atendimento aos infectados.

Buba Aguiar, do coletivo Fala Akari, explica o atual problema para moradores, que não têm acesso constante à água.

"Em ruas tem certo horário para ligar a bomba de água, e não tem água o dia inteiro. Às vezes a água está fraca e nem a bomba dá jeito. As pessoas acabam sendo infectadas com doenças por conta da falta de saneamento básico ou de ele ser defasado. E aí surge mais essa preocupação do ter ou não ter álcool em gel em casa. Mas como ter se não tinha dinheiro nem pra comprar água mineral?", questiona.

Para ajudar uns aos outros, os moradores fizeram uma mobilização: sempre que há novo carregamento de álcool em algum estabelecimento da favela, um aviso corre os grupos de WhatsApp para quem puder, comprar.

"Mas estamos reforçando que lavar a mão é suficiente, para ninguém ter esse gasto extra", destaca Buba. Como a água é, de novo e sempre, uma questão, Buba finaliza: "O melhor conselho que damos é para quem puder ficar em casa, permanecer."

Até a noite de ontem, havia 31 casos confirmados e mais 94 suspeitas de infecção pelo novo coronavírus no estado do Rio.