"Precisei invadir a sala da médica", diz doente sem atendimento na pandemia
Resumo da notícia
- Estudo diz que 74% dos doentes com câncer tiveram o tratamento interrompido na pandemia
- Após 4 meses de espera, uma delas invadiu a sala de sua ginecoligista
- Com câncer no colo do útero, ela aguardava consulta desde abril
- Mesmo assim, cancelaram o exame que vai dizer se ela terá de tirar parte do intestino
- Para médica, o futuro reserva filas de cirurgias mais invasivas e aumento de mortes
As cólicas, a dormência nas pernas e as dores de cabeça ficaram insuportáveis e, quando se deu conta, a dona de casa Sulli Dias Duarte Silva, 48, já estava com o celular nas mãos entrando à força na sala da médica: se não passasse em consulta, faria uma denúncia. Sulli, diagnosticada com câncer de colo de útero, finalmente foi atendida depois de quatro meses de espera.
Sulli é uma entre tantos pacientes com câncer que tiveram seu tratamento interrompido durante a pandemia do novo coronavírus. Pesquisa da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) informa que 74% dos médicos relatam pelo menos um caso de paciente oncológico com os cuidados interrompidos por mais de 30 dias durante a crise sanitária.
A maior dificuldade relatada pelos médicos foi a de realizar cirurgias, um problema para 67% dos entrevistados. Para 22,5% dos oncologistas, os exames também encararam obstáculos.
"Tive de lutar"
Depois de passar por radioterapia, quimioterapia e braquiterapia (um tipo de radioterapia aplicada direto no órgão tratado) no ano passado, Sulli teve a primeira consulta de avaliação marcada para abril deste ano. Mas o encontro com a médica acabou cancelado diversas vezes.
"Eu estou em um sítio em Capim Branco (MG)", diz dona Sulli. "Eu saia todos os dias para fazer consulta. Quando eu chegava, estava desmarcada, ou desmarcavam em cima da hora, um descaso."
No dia 17 de agosto, ela voltou ao hospital, e mais uma vez deu com a cara na porta.
Eu tive que lutar porque estava com muita dor. Abri a sala da médica e me impus. Entrei filmando e falei que não aguentava mais, que estava esperando desde abril e que se não fosse atendida eu ia denunciar. Aí ela me atendeu.
Sulli Dias Duarte Silva, paciente oncológica
Embora tenham recolhido material para exame, outra consulta "de extrema urgência" foi cancelada.
"Agora desmarcou a ressonância do intestino para saber se vai precisar tirar parte dele. Era para o dia 27 de agosto, mas já desmarcaram e não tem data", lamenta a paciente. "Tá uma calamidade por causa da pandemia."
Sulli conta com ajuda da Femama (federação de instituições filantrópicas ligadas à saúde da mama) para conseguir pressionar o hospital. Mastologista, a presidente da entidade, Maira Caleffi, classifica como um "erro" a recomendação para que pacientes com câncer ficassem em casa no começo da pandemia.
"Além de muitos pacientes terem sido mandados para casa, várias cirurgias foram canceladas depois de terem sido consideradas eletivas, o que é um erro. Eletiva é cirurgia plástica, as de câncer nunca foram consideradas eletivas porque são dramáticas", diz.
Desde a saída do ex-ministro Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, em abril, diz ela, a pasta perdeu protagonismo na condução da pandemia, deixando pacientes oncológicos "sem instrução".
"Eles têm de buscar ajuda sozinhos. Aí não conseguem fazer exames, mesmo com indicação de biópsia", afirma a médica, que diz não ter interrompido o atendimento a seus pacientes no Hospital Moinhos de Vento, onde é chefe de um serviço que trata doentes com câncer de mama.
Aumento de mortes por câncer
A especialista espera "um rebote" de casos em 2021.
As filas vão aumentar os casos de câncer avançados, com cirurgias mais invasivas, mutilação maior. Mais pessoas vão perder a vida e os custos serão mais altos para o Estado.
Maira Caleffi, mastologista
Ela defende "uma força tarefa entre as sociedades médicas" para reduzir a fila e sugere que o SUS (Sistema Único de Saúde) compre serviço privado, "a exemplo de casos bem-sucedidos na pandemia de coronavírus", diz ela em referência à contratação de leitos privados por alguns estados.
Quando não desmarcam consultas, o ginecologista não marca. É negligência mesmo. Eu precisei entrar na sala da médica e me impor. Fazer o quê? É o Brasil.
Sulli Dias Duarte Silva, paciente oncológica
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