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Caminhamos para 300 mil mortes como se fosse natural, diz médico de SP

26.fev.21 - Enterros no Cemitério Parque Taruma em Manaus, primeiro estado brasileiro a enfrentar colapso no sistema de saúde - Bruno Kelly/Reuters
26.fev.21 - Enterros no Cemitério Parque Taruma em Manaus, primeiro estado brasileiro a enfrentar colapso no sistema de saúde Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Samirah Fakhouri

Da Revista Esquinas

02/03/2021 21h01Atualizada em 02/03/2021 21h03

Aos 60 anos de idade, 37 deles atuando no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, o médico Jamal Suleiman está cansado. Menos pela rotina diária de ao menos oito horas no hospital referência contra a covid-19, e mais pela constatação de que pouco se aprendeu com a tragédia. "Depois de um ano de pandemia, as pessoas não conseguem ter o mínimo de empatia. A equação é clara: chegam as festas, as pessoas se aglomeram, novas variantes circulam, mais pessoas são hospitalizadas, a mortalidade aumenta".

Para Suleiman, o Brasil vive hoje seu pior momento na pandemia — e os picos observados depois das festas de fim de ano e carnaval devem se repetir logo mais, na Páscoa. Segundo o infectologista, somente com a combinação de distanciamento social e vacinação ampla e ágil — "com imunizante suficiente, daria para vacinar todo mundo até setembro" — é possível ser otimista quanto ao desfecho da pandemia. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual é a diferença dessa situação atual e do que se convencionou chamar de "pico" da pandemia no ano passado?

A diferença é que, apesar de termos adquirido experiência e conhecimento na condição dos casos graves, a gente não consegue diminuir a mortalidade. O número de casos é muito alto, e o sistema de saúde está extremamente tensionado. A consequência é uma quantidade muito alta de mortes.

Como chegamos a essa situação?

Depois de um ano de pandemia, as pessoas não conseguem ter o mínimo de empatia. Nas festas de fim de ano, apesar de toda a recomendação para evitar aglomerações, as pessoas se aglomeraram. Mesmo com o Carnaval suspenso, isso ocorreu de novo. Com aglomeração de pessoas, a infecção alastra. A equação é muito clara.

O senhor diria que as pessoas se conformaram com a tragédia?

Há uma naturalização, uma vulgarização do problema. Parte dessa atitude tem endereço: Palácio do Planalto. Desde que a pandemia se instalou, ela vem sendo minimizada por ali. "Gripezinha", "tem de enfrentar", "coisa de maricas". Quando uma pessoa que é formadora de opinião e que tem o papel de liderança diz essas coisas, há um efeito na população. Essa crise é mais do que sanitária, ela é política e mesmo pessoal. Estamos caminhando para 300 mil vidas perdidas como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

O que mais chama a sua atenção nesse processo de naturalização da covid?

O que eu acho mais interessante é que tornaram essa doença uma coisa normal, uma doença de transmissão respiratória que mata pessoas. Como se fosse correto dizer: "Se mata velho, qual é o problema? Eles morrem mesmo!" A gente precisa reverter esse pensamento. Isso não é natural: é um ponto absolutamente fora da curva que exige medidas farmacológicas e sanitárias — distanciamento social, usar máscaras etc.

A situação tende a piorar?

A perspectiva é ruim. Ainda estamos sentindo o reflexo das festas clandestinas no carnaval. Em breve teremos o recesso da Páscoa, outro momento em que as pessoas se juntam. Se nada mudar, é só questão de tempo: 10, 14 dias depois da Páscoa, começam a chegar novos doentes, que se juntam aos hospitalizados ainda do Carnaval, pois a permanência é longa e o tratamento é de alta complexidade.

É preciso endurecer as medidas de isolamento social?

Se a gente não tomar uma atitude drástica em relação ao isolamento, a perspectiva é muito ruim. Um lockdown seria importante, mas com contrapartidas econômicas, garantias de apoio efetivo para os setores afetados. Estamos vendo que um lockdown sem contrapartida não tem apoio da sociedade — as pessoas precisam trabalhar para sobreviver. E, sem o apoio da sociedade, não existe lockdown.

As novas cepas do coronavírus preocupam?

A seleção natural explica grande parte do que está acontecendo com o vírus hoje. Os germes que ficam mais prevalentes são as que possuem maior facilidade de transmissão. Imagina-se que a cepa primária que deu início à pandemia já foi sobreposta por variantes com capacidade de infecção superior à da cepa primária.

Essas novas variantes escapam às vacinas?

As vacinas foram desenvolvidas tendo como base a cepa inicial e, pelo que se sabe até agora, funcionam com diferentes níveis de eficácia também para as variantes. Mas como a seleção natural continua, é possível no futuro que alguma escape a esse processo, tornando o cenário mais caótico. Por isso é importante imunizar rapidamente a população.

A vacinação reduz dramaticamente a seleção natural. Como há um "cinturão de proteção" de imunizados, o vírus fica restrito a universos menores, o que facilita o controle de eventuais surtos.

Quanto tempo temos?

Eu diria que precisamos vacinar a população adulta do Brasil até setembro. E a gente tem condições de fazer isso: o Brasil tem 37 mil salas de vacinação. Se tivermos vacina, é possível.

E para termos vacina, falta o quê?

Falta vontade política, falta uma estratégia de saúde pública. Daí você corre atrás de insumo para fabricação, que é a grande demanda hoje. Precisamos sair dessa discussão estéril de paternidade da vacina. O Instituto Butantan e a Fiocruz são estruturas públicas que pertencem à população. Não importa quem vai ganhar esse jogo político, quem tem de ganhar é a população que precisa ser imunizada. Nós precisamos ter gestão. Infelizmente, não temos.

Com um olhar otimista, se a vacinação acontecer até setembro, quais seriam os próximos passos?

A vacina tem a função de impedir a transmissão, a evolução do vírus e quebrar a cadeia de transmissão. Se conseguirmos uma dessas coisas, ótimo. Se conseguirmos duas, melhor. Três, excepcional. A partir daí, é você trabalhar os dados para saber se a imunidade das pessoas vai se manter, ou se a gente vai precisar fazer alterações no imunizante que já temos. E por último, não menos importante, saber qual dessas vacinas tem o melhor perfil para obter os três efeitos desejados.

O pós-vacinação ainda será de bastante trabalho. Mas, se nós conseguimos minimamente reduzir o número de casos, transformando uma pandemia em uma endemia, que significa uma circulação muito menor, pode-se usar o sistema de saúde para identificar casos, conter e bloquear a transmissão, retomando a economia e a vida normal.