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ButanVac: Especialistas veem aplicação de doses em setembro como inviável

ButanVac, vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan - Lucas Borges Teixeira/UOL
ButanVac, vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan Imagem: Lucas Borges Teixeira/UOL

Lucas Borges Teixeira

Do UOL, em São Paulo

01/05/2021 04h00

O início de distribuição da ButanVac para setembro, como quer o Instituto Butantan, é inviável, segundo especialistas entrevistados pelo UOL.

Sem nem ter iniciado os testes em humanos, a organização vinculada ao governo paulista teria de adiantar etapas para começar a entregar as doses nesse prazo, o que não é habitual da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Quando a ButanVac foi anunciada, em 26 de março, o governo de São Paulo previu o início da distribuição para julho. Agora, a produção foi realmente iniciada, e o cronograma, recalculado para setembro —desde que os testes clínicos da fase 1 e 2 sejam iniciados em maio, após aprovação dessa etapa pela Anvisa. No entanto, nem o protocolo para o início da pesquisa em humanos foi aprovado até agora.

"Quatro meses é um prazo muito curto, irreal, para obter os resultados de testes de qualquer vacina. É inviável. Você não tem só o tempo regulatório como uma série de etapas que necessariamente precisam ser preenchidas e não tem como diminuir", afirma o imunologista Gustavo Cabral, pesquisador da USP (Universidade de São Paulo).

Segundo o Butantan, o plano é entregar a documentação faltante ainda na primeira semana de maio e iniciar as fases 1 e 2 dos testes em humanos concomitantemente para pedir, após a 16ª semana, o registro para uso emergencial na Anvisa. Logo, não só antes da conclusão das fases 1 e 2, que levam até 20 semanas, como antes do início da fase 3, que testa a eficácia da vacina.

Ao UOL, a Anvisa afirmou que, embora "não seja possível antecipar posicionamentos sobre processos que ainda não foram apresentados", seu guia de referência técnica sobre vacinas contra covid "indica a necessidade de que a vacina proposta para uso emergencial esteja em fase 3 de pesquisa clínica".

No guia, a agência estabelece que o pedido de autorização temporária deve "preferencialmente possuir" documentos do "ensaio clínico fase 3, pelo menos, em andamento e em condução no Brasil". A fase 3 é considerada a fase mais importante entre os testes em humanos.

Cronograma da ButanVac, segundo estimado pelo Butantan

  • Início da produção - 28 de abril
  • Fases 1 e 2 - De maio a setembro
  • Entrega de 18 milhões de doses - 1ª quinzena de junho
  • Fase 3 - a partir de setembro

As fases de estudo

Nas duas primeiras etapas, os pesquisadores testam grupos menores (de dezenas a centenas de voluntários) para avaliar se a vacina causa algum efeito colateral, se é tolerável ao nosso corpo e se causa resposta imune ao sistema (imunogenicidade). Elas levam de quatro a cinco meses.

É na fase 3, já com milhares de voluntários, que há a maior avaliação sobre a segurança da vacina e, em especial, sobre a eficácia. Nesta fase, aplicam doses do imunizante e de placebo nos voluntários para avaliar o número de infectados e chegar a quanto ela, de fato, protege.

Neste período, são mais quatro a seis meses, pelo menos, para ter um resultado sólido —o que jogaria a conclusão para, no mínimo, novembro ou dezembro. Para os pesquisadores, não há como distribuir vacina antes de iniciar essa etapa.

Unir as fases 1 e 2 tem sido feito e o Butantan, com sua excelência, consegue fazer isso perfeitamente. Mas jamais --jamais-- vai levar uma vacina para aplicação em massa sem passar pela fase 3. Não existe. É nesse momento que se sabe se funciona ou não.
Gustavo Cabral, imunologista da USP

O virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale (RS), diz acompanhar o processo da ButanVac apenas pela imprensa, mas considera quatro meses um tempo "apertado" e não vê este modus operandi de aprovação na Anvisa.

"Seria uma exceção muito grande dentro do que a gente tem visto, com o nível de cuidado adotado pela Anvisa. É o órgão regulador quem tem de responder, mas [aprovar sem iniciar a fase 3] não me parece algo viável", afirma Spilki.

Renato Kfouri, diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), diz não se lembrar de uma vacina contra a covid que tenha começado a ser produzida em fase pré-clínica e que não vê qualquer aplicação sem fase 3 —mas reforça "torcer pelo sucesso" da ButanVac.

"Se for para distribuir, deixar nas geladeiras, prontas, [a Anvisa] pode até, eventualmente, abrir uma exceção —como já autorizou a importação de vacinas que não tinham seus estudos concluídos. Mas utilização de produto sem registro, sem fase 3, portanto? Não é possível", afirma o imunologista.

O UOL ouviu ainda três pesquisadores de imunologia e microbiologia que pediram para não se identificar, mas classificaram a entrega da ButanVac para setembro como "impossível".

"O Butantan é referência mundial em produção de vacinas. Eles sabem o que estão fazendo, por isso mesmo que não vão entregar nada sem fase 3 e em poucos meses de pesquisa. Ninguém no mundo fez, não tem milagre", afirmou um dos pesquisadores.

Quanto tempo leva?

Para os especialistas ouvidos pelo UOL, o desenvolvimento das vacinas contra a covid, um desafio da ciência global dada descoberta recente da doença, tem variado, mas nunca foi feito em quatro meses a partir do início dos testes em humanos.

As vacinas da covid, em geral, duraram entre sete e nove meses. Foi o prazo que as vacinas hoje licenciadas levaram a uma aprovação, desde o início da fase clínica.
Renato Kfouri, diretor da SBIm

"Usualmente tem sido da ordem de, ao menos, nove meses", concorda Spilki. Com a CoronaVac, por exemplo, foram cinco meses (julho a dezembro) só para a realização da fase 3, única feita no Brasil, e pedido de uso emergencial.

De julho a setembro a...

Caso a avaliação dos pesquisadores se confirme, será a segunda vez que a ButanVac estenderá o prazo de entrega. No final de março, o governador João Doria (PSDB) cravou a distribuição para julho.

No final de abril, o governo paulista e o Butantan reavaliaram. Em entrevistas, Dimas Covas, diretor do instituto, passou a estimar esse prazo para setembro e, na semana passada, anunciou o início da produção, com previsão de pelo menos 18 milhões de doses para a primeira quinzena de junho.

"Nós estamos falando de setembro, é uma data possível de obtenção da autorização para uso emergencial. Obviamente que isso não depende [apenas] do Butantan", afirmou Covas no dia 23. Nesse dia, o Butantan enviou os documentos para pedido de início dos estudos clínicos e a Anvisa requereu, quatro dias depois, novos documentos. A complementação deverá ser enviada nesta semana.

"O Butantan tem sob sua responsabilidade realizar os estudos e produzir a vacina. A partir daí, já é responsabilidade da análise da própria Anvisa", disse Dimas Covas. Na última quarta (28), após o pedido de nova documentação, tanto ele quanto Doria cobraram "menos burocracia" por parte da agência.