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Covid: Pessoas burlam regra e usam diplomas antigos para antecipar vacina

Renata Soares é biologa e já foi vacinada em São Paulo em brecha de regra - Marcelo Justo/UOL
Renata Soares é biologa e já foi vacinada em São Paulo em brecha de regra Imagem: Marcelo Justo/UOL

Carlos Messias

Colaboração para o UOL, em São Paulo

31/05/2021 04h00

O Plano Vacina Sampa, da Prefeitura de São Paulo, estabelece que professores com mais de 47 anos, obrigados a lecionar presencialmente em meio à pandemia, precisam efetuar um cadastro no site da Secretaria Municipal de Saúde e apresentar QR code recebido por e-mail após a validação dos dados, além de um comprovante de vínculo empregatício, como o holerite mais recente.

Enquanto isso, categorias como psicólogos, biólogos e educadores físicos, enquadrados como profissionais da saúde, só apresentam documento do conselho de classe ou diploma de formação universitária, o que abre uma brecha para que indivíduos que não exercem tais profissões ou nem exerçam qualquer atividade presencial sejam imunizados.

Desde sexta (28), esses critérios valem para profissionais de saúde a partir de 18 anos. "Trabalhadores dos serviços de saúde são todos aqueles que atuam em espaços e estabelecimentos de assistência e vigilância à saúde, sejam eles hospitais, clínicas, ambulatórios, laboratórios e outros locais", diz a prefeitura ao classificar quem pode se vacinar. Ou seja, são pessoas que exercem a profissão.

Helena (nome fictício), 37, trabalha como headhunter ou recrutadora de RH desde que se formou em psicologia pela Universidade Mackenzie, em 2006. Durante a pandemia manteve sua rotina de home office com reuniões por Zoom e pesquisas no Linkedin. Mas conseguiu se vacinar no último dia 20.

Fiquei em um dilema, justamente por ter consciência da minha condição de não precisar empreitar e poder ficar em casa. Por isso prefiro não me identificar na reportagem. Agora pelo menos sou uma pessoa a menos para disseminar o vírus.
Helena (nome fictício), headhunter já se vacinou

Apesar da fala da Helena, estudos apontam que pessoas vacinadas ainda podem transmitir o vírus.

Ela não tinha em mãos o diploma ou a carteirinha do CRP (Conselho Regional de Psicologia) porque estavam em São José dos Campos, sua cidade natal, no interior de São Paulo. Mas isso não impediu que fosse imunizada.

"Minha mãe mandou fotos dos documentos por WhatsApp, eu imprimi e eles aceitaram", conta ela, que recebeu sua primeira dose de AstraZeneca na UBS Dr. Manoel Joaquim Pera, na Vila Madalena, zona oeste da capital.

Daniela Gomes, 38, se formou em psicologia em 2005, mas não exerce a profissão desde 2008. Atualmente trabalha no departamento administrativo de uma empresa privada.

"Passei por três postos na região do Ipiranga por três dias seguidos. De manhã e à tarde estava sempre tranquilo. Notei que muita gente ia até a unidade de saúde para se vacinar, mas, quando ficava sabendo que apenas a AstraZeneca estava disponível, ia embora", diz Daniela, que se vacinou no dia 25 na UBS Moinho Velho 2, no Ipiranga, zona sul.

Carlos  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O jornalista Carlos Messias se vacinou usando seu diploma de bacharelado em psicologia
Imagem: Arquivo pessoal

Eu mesmo, que atuo como jornalista há 15 anos (há quatro como free-lancer em home office), tenho um diploma em psicologia que nunca utilizei. Nem sequer poderia exercer a profissão de psicólogo, uma vez que não fiz o quinto ano do curso, de prática clínica supervisionada, necessário para tirar o CRP.

Só com meu diploma de bacharel em psicologia, além da CNH (embora comprovante de endereço esteja entre as diretrizes, não me foi solicitado), recebi minha primeira dose de AstraZeneca no dia 19, também na UBS Dr. Manoel Joaquim Pera. Lá, uma agente comunitária relatou que, até a semana passada, quando não havia doses de Pfizer disponíveis, todo dia alguém ia embora ao saber que só tinha AstraZeneca.

Não só psicólogos de formação se beneficiam da brecha. A reportagem ainda ouviu relatos de um educador físico que atua como coreógrafo e conseguiu se vacinar legalmente, além de duas biólogas —mas só uma delas que aceitou aparecer nas imagens deste texto.

A bióloga Renata Soares, 30, dá aula de ciências para alunos do sexto e do sétimo ano no Centro de Ensino São José, no Jardim Bonfiglioli, zona oeste. Enquanto a fila para professores está empacada em profissionais com mais de 47 anos, ela se valeu do diploma em biologia pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) para garantir sua primeira dose do imunizante da Pfizer, recebida na UBS Butantã no dia 19.

Fiquei num dilema moral se fazia o que acho certo ou se protegia minha vida, já que tenho que dar aula. Agi dentro do que foi estabelecido, e a culpa não é minha que não tem vacina para mim.
Renata Soares, bióloga

Renata Soares - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Imagem: Marcelo Justo/UOL
A categoria dos biólogos pode ser considerada atividade essencial na pandemia e abrange botânicos e ecólogos, caso de Carolina Schlosser, 30, que nos últimos três anos trabalha em casa, em uma análise de dados coletados em 2018.

Ela se vacinou com AstraZeneca no Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa no dia 18, data em que foi aberta a vacinação para profissionais de saúde com menos de 42 anos, usando seu diploma em biologia pela USP (Universidade de São Paulo).

Eu não sou a favor desse critério, não faz nenhum sentido associar um diploma a uma atuação na área da saúde. Mas é muito complicado colocar a responsabilidade sobre o indivíduo.
Carolina Schlosser, bióloga

Questionado pela reportagem, o secretário municipal da Saúde de São Paulo, Edson Aparecido, tentou atribuir responsabilidade ao governo federal, que estabeleceu as categorias enquadradas como profissionais da saúde, e ao governo estadual.

Fila - Rivaldo Gomes/Folhapress - Rivaldo Gomes/Folhapress
Fila para vacinação na UBS Jardim Aeroporto , na zona sul de São Paulo
Imagem: Rivaldo Gomes/Folhapress
No entanto, nem no Plano Nacional de Imunização (PNI) nem no #VacinaJá, do governo do estado, estão listados os documentos a serem apresentados para comprovação do status de profissional da saúde.

Já nas diretrizes do plano Vacina Sampa, da prefeitura, consta claramente na coluna de requerimentos para profissionais da saúde: "Documento de conselho de classe ou comprovante de profissão (certificado ou diploma)".

Além disso, uma fonte na Secretaria da Saúde do estado confirmou ao UOL que esses critérios foram estabelecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Quando confrontado com essas informações, Edson Aparecido respondeu: "Profissional da saúde enfrenta a pandemia, professor não".

Lista de profissionais da saúde que podem ser vacinados a partir dos 18 anos:

  • Médicos;
  • Enfermeiros/técnicos e auxiliares;
  • Nutricionistas;
  • Fisioterapeutas/terapeutas ocupacionais;
  • Biólogos; biomédicos/técnicos de laboratório que façam coleta de RT-PCR SARS-CoV-2 e análise de amostra de covid-19;
  • Farmacêuticos/técnico de farmácia;
  • Odontólogos/ASB - Auxiliar de Saúde Bucal/TSB - Técnico de Saúde Bucal;
  • Fonoaudiólogos;
  • Psicólogos e assistentes sociais;
  • Profissionais da educação física;
  • Médicos veterinários.