Pandemia controlada? 'Vida normal' fica sem garantia, mesmo com imunidade
O Brasil poderá atingir uma imunidade de rebanho por meio da campanha de vacinação, com mais de 70% da população vacinada, em fevereiro de 2022. A avaliação é da consultoria Airfinity, responsável por reunir os dados do setor farmacêutico mundial.
Isso não quer dizer, no entanto, que o país já terá retomado à "vida normal" nem que as festas de Réveillon e Carnaval estejam garantidas, como já disseram algumas autoridades.
A chegada da variante Delta e a manutenção de indicadores altos, embora em queda, fazem com que médicos e pesquisadores discordem sobre a previsão de controle da pandemia no país.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), que já chegou a fazer previsões, voltou atrás e diz já não pensar em datas, porque avalia que a pandemia esteja longe de acabar.
Considerando os acordos de fornecimento e a produção nacional, a estimativa da Airfinity, preparada a pedido do UOL, é que 50% da população brasileira estará vacinada no início de janeiro de 2022. Ao final de fevereiro, a taxa subiria graças ao aumento de produção e finalmente chegaria a 75%, suficientes para garantir a imunidade de rebanho no país.
Até esta semana, o Brasil imunizou apenas 15,4% da população total com duas doses ou dose única, mas a vacinação está acelerando. Em maio, de acordo com o Ministério da Saúde, foram 662 mil imunizados por dia. Em junho, subiu para 1 milhão e, em julho, até o dia 15, para 1,3 milhão de pessoas ao dia.
Vacinação em outros países
A situação é ainda bem mais lenta do que em outros países. Nos Estados Unidos, a imunidade estaria garantida em outubro deste ano, quatro meses antes. No Canadá, com uma população bem menor, a expectativa é atingir a taxa de 75% no começo de setembro.
Na Europa, a taxa varia entre os países. Mas, de uma forma geral, o bloco deve conseguir atingir uma imunidade de rebanho no final de setembro --e seria o mês também para isso se completar no Reino Unido. A taxa de 75% deve ser atingida em outubro na Suíça, na França e na Suécia.
Mesmo assim, o efeito da vacinação já pode ser sentido por aqui, com queda no número de mortes e internações de todas as faixas imunizadas. Segundo o último relatório do Observatório Fiocruz Covid-19, divulgado na semana passada, há queda em todos os indicadores da pandemia no Brasil.
Isso, no entanto, não garante que o país possa voltar à "vida normal" a partir do início de 2022. Especialistas ouvidos pelo UOL discordam da previsão de controle da pandemia e contestam a possibilidade de realização de grandes eventos públicos a partir da virada do ano.
Pontos favoráveis da atual situação no Brasil
- Queda progressiva na média de mortes;
- Diminuição dos indicadores de transmissão do vírus;
- Vacinação em aceleração;
- Eficácia da vacinação.
Pontos desfavoráveis da atual situação no Brasil
- Média de mortes continua superior a mil por dia;
- Ocupação de leitos de UTI só está abaixo de 60% em sete estados;
- Variante Delta já dá indícios de transmissão comunitária.
Pode ser no início de 2022...
Para o epidemiologista Pedro Hallal, professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), já é possível estimar o fim da pandemia para a virada do ano, com "margem de erro" para o início de 2022. Segundo ele, o avanço da vacinação e a queda em todos os indicadores apontam para um controle progressivo do vírus no Brasil.
"Chamo de fim da pandemia o fato de voltarmos à vida normal, incluindo festas de final de ano e Carnaval. Essas previsões são baseadas no cenário observado em outros países, que já vacinaram um percentual maior de sua população", afirma o epidemiologista.
Para isso, ele diz, o Brasil precisa atingir pelo menos 70% da população geral imunizada, como estima a consultoria, e média abaixo de cem mortes por dia. Nesta semana, está acima de 1.200 óbitos.
...ou não
Isso não é consenso. A proliferação da variante Delta, que apresenta maior transmissibilidade e tem feito com que países repensem sua política de relaxamento, é vista como ponto-chave para o futuro da pandemia no país.
No mundo inteiro, já existe uma nova onda determinada pela Delta. No Brasil, a dinâmica das próximas semanas será determinada pela disputa dela com a Gamma, predominante aqui, somada à velocidade da vacinação. Não há como fazer previsões, é isso que vai decidir se teremos uma nova explosão.
Miguel Nicolelis, neurocientista
Apesar da queda nos indicadores, o Brasil continua com patamares altos da pandemia. Já são 178 dias (ou quase seis meses) com a média móvel de óbitos acima de mil.
"Isso de que estamos com indicadores muito bons, enquanto temos mais de 1.200 pessoas morrendo por dia, é o absurdo que repetimos em outubro", afirma Domingos Alves, professor da FMUSP-Ribeirão, referindo-se à queda dos indicadores no final do ano passado, antes da segunda onda.
"O Rio de Janeiro vai anunciar na próxima semana a transmissão comunitária da Delta e, na sequência, São Paulo. O fim da pandemia não vai acontecer tão cedo", afirma ele.
Hallal avalia, no entanto, que o Brasil deverá experimentar situação semelhante à do Reino Unido e da Holanda, que, com a Delta, voltaram a apresentar picos de casos, mas com internações e mortes controladas, devido à vacinação. "É o futuro. Alguns surtos isolados, mas com baixo número de mortes", afirma o epidemiologista.
"Os países mais atingidos já passaram dos 60% de imunização. O Brasil está em 15% e ainda não se defrontou com a Delta. Com a velocidade que estamos, se ela ganha da Gamma, poderemos ter indicadores com os níveis de março e abril", discorda Nicolelis.
OMS abandonou previsões
Em agosto de 2020, antes das primeiras vacinas, a OMS previa que a pandemia poderia estar controlada até meados de 2022 no mundo. A perspectiva era de que a crise sanitária duraria dois anos. A perspectiva de erradicar o vírus era considerada como uma missão impossível. Mas um controle seria possível, com o mundo sendo preparado para conviver com o vírus.
Naquele momento, as variantes eram ainda apenas uma ameaça. Hoje, elas são realidades que colocam em risco os planos de controle da doença. De acordo com a OMS, a variante Delta já é predominante e está presente em mais de cem países.
Também havia a perspectiva de que, uma vez descobertas, as vacinas seriam distribuídas de forma igualitária pelo mundo, algo que jamais ocorreu. Hoje, a esperança da OMS é que 10% da população de cada país possa ser vacinada até setembro. Mas dezenas deles continuam a ter apenas 1% ou 2% de seus habitantes imunizados.
Nos últimos dias, o comitê de emergência da OMS fez um alerta em um tom radicalmente diferente: o fim da pandemia está longe de ser declarado.
Nesta sexta-feira, Christian Lindmeier, porta-voz da OMS, também abandonou a referência a qualquer calendário. "Temos dito que o fim da pandemia está em nossas mãos e pode ocorrer rapidamente se agirmos de forma coordenada, usando todos os instrumentos", disse.
Mas, segundo ele, os números não são otimistas. "As vacinas significam uma queda de hospitalização e de mortes. Mas, pela quarta semana consecutiva, os números de novas infecções continuam a aumentar", alertou.
"Sem fixar nenhum calendário, a realidade é que nenhum país terminará sozinho com a pandemia", afirmou. Para ele, governos precisam continuar a adotar medidas de distanciamento social, rastrear casos e isolar pessoas contaminadas.
Sem medidas restritivas, indicadores podem voltar a explodir
A queda dos indicadores também não indica o controle da pandemia. De acordo com projeções da Universidade de Washington (EUA), se este ritmo se mantiver, o Brasil deverá totalizar 603 mil mortos de covid em 1º de outubro.
No entanto, se todos os cuidados forem abandonados, este número pode ser ainda maior, de 667 mil mortos em 1º de outubro. Com o uso universal de máscara e isolamento social, por sua vez, cairia para 583 mil.
"Mas essa projeção não leva em consideração a proliferação da Delta nem a falência do sistema de saúde. Em um país em colapso, com equipes médicas depauperadas e falta de leitos e de medicamentos, qualquer subida de casos tem somatória não linear", afirma Nicolelis. Segundo o relatório da Fiocruz, só sete estados estão com ocupação de UTI (Unidades de Terapia Intensiva) abaixo de 60%.
Quando fazemos uma análise de risco, o Brasil tem todos os fatores [ruins para a pandemia]: falta de isolamento social, vacinação baixa e presença da Delta.
Miguel Nicolelis, neurocientista
Não há precedentes para o Carnaval pós-pandemia
Mesmo em uma situação mais controlada, as festas de Réveillon e o Carnaval trazem uma preocupação diferente: sem qualquer distanciamento ou proteção, seria um evento ainda inédito no mundo pós-pandemia.
Poucos lugares no mundo têm mega-aglomerações como o Carnaval. Nada na Europa ou Estados Unidos pode ser comparado: são milhões de pessoas reunidas em todo o país. Isso cria uma circulação ainda sem precedentes para o vírus. É algo que a ciência ainda não consegue estimar o efeito, por isso é complicado [de liberar].
Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo
Para o epidemiologista, os dois eventos têm ainda o fator crítico de circulação de pessoas do mundo inteiro. "O Brasil já é o maior experimento de circulação de vírus do mundo, com muitas variantes. Esses eventos têm turistas de todas as partes, imagina a concentração de variantes?", questiona.
Ele diz que os passos têm de ser dados aos poucos. "Com toda a população adulta vacinada, é possível discutir a suspensão do uso de máscaras ou das restrições de ocupação no locais, mas ainda não sabemos, no mundo, quando e o quanto vai ser possível voltar ao que era antes", conclui.
* Colaborou Nathan Lopes, em São Paulo
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