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Pandemia controlada? 'Vida normal' fica sem garantia, mesmo com imunidade

Movimentação na praia do Leme, no Rio, em junho deste ano - Bruno Martins/Estadão Conteúdo
Movimentação na praia do Leme, no Rio, em junho deste ano Imagem: Bruno Martins/Estadão Conteúdo

Jamil Chade e Lucas Borges Teixeira

Colunista do UOL, e do UOL, em São Paulo*

18/07/2021 04h00

O Brasil poderá atingir uma imunidade de rebanho por meio da campanha de vacinação, com mais de 70% da população vacinada, em fevereiro de 2022. A avaliação é da consultoria Airfinity, responsável por reunir os dados do setor farmacêutico mundial.

Isso não quer dizer, no entanto, que o país já terá retomado à "vida normal" nem que as festas de Réveillon e Carnaval estejam garantidas, como já disseram algumas autoridades.

A chegada da variante Delta e a manutenção de indicadores altos, embora em queda, fazem com que médicos e pesquisadores discordem sobre a previsão de controle da pandemia no país.

A OMS (Organização Mundial da Saúde), que já chegou a fazer previsões, voltou atrás e diz já não pensar em datas, porque avalia que a pandemia esteja longe de acabar.

Considerando os acordos de fornecimento e a produção nacional, a estimativa da Airfinity, preparada a pedido do UOL, é que 50% da população brasileira estará vacinada no início de janeiro de 2022. Ao final de fevereiro, a taxa subiria graças ao aumento de produção e finalmente chegaria a 75%, suficientes para garantir a imunidade de rebanho no país.

Até esta semana, o Brasil imunizou apenas 15,4% da população total com duas doses ou dose única, mas a vacinação está acelerando. Em maio, de acordo com o Ministério da Saúde, foram 662 mil imunizados por dia. Em junho, subiu para 1 milhão e, em julho, até o dia 15, para 1,3 milhão de pessoas ao dia.

media de doses de vacina por dia - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Vacinação em outros países

A situação é ainda bem mais lenta do que em outros países. Nos Estados Unidos, a imunidade estaria garantida em outubro deste ano, quatro meses antes. No Canadá, com uma população bem menor, a expectativa é atingir a taxa de 75% no começo de setembro.

Na Europa, a taxa varia entre os países. Mas, de uma forma geral, o bloco deve conseguir atingir uma imunidade de rebanho no final de setembro --e seria o mês também para isso se completar no Reino Unido. A taxa de 75% deve ser atingida em outubro na Suíça, na França e na Suécia.

Mesmo assim, o efeito da vacinação já pode ser sentido por aqui, com queda no número de mortes e internações de todas as faixas imunizadas. Segundo o último relatório do Observatório Fiocruz Covid-19, divulgado na semana passada, há queda em todos os indicadores da pandemia no Brasil.

Isso, no entanto, não garante que o país possa voltar à "vida normal" a partir do início de 2022. Especialistas ouvidos pelo UOL discordam da previsão de controle da pandemia e contestam a possibilidade de realização de grandes eventos públicos a partir da virada do ano.

Pontos favoráveis da atual situação no Brasil

  • Queda progressiva na média de mortes;
  • Diminuição dos indicadores de transmissão do vírus;
  • Vacinação em aceleração;
  • Eficácia da vacinação.

Pontos desfavoráveis da atual situação no Brasil

Pode ser no início de 2022...

Para o epidemiologista Pedro Hallal, professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), já é possível estimar o fim da pandemia para a virada do ano, com "margem de erro" para o início de 2022. Segundo ele, o avanço da vacinação e a queda em todos os indicadores apontam para um controle progressivo do vírus no Brasil.

"Chamo de fim da pandemia o fato de voltarmos à vida normal, incluindo festas de final de ano e Carnaval. Essas previsões são baseadas no cenário observado em outros países, que já vacinaram um percentual maior de sua população", afirma o epidemiologista.

Para isso, ele diz, o Brasil precisa atingir pelo menos 70% da população geral imunizada, como estima a consultoria, e média abaixo de cem mortes por dia. Nesta semana, está acima de 1.200 óbitos.

...ou não

Isso não é consenso. A proliferação da variante Delta, que apresenta maior transmissibilidade e tem feito com que países repensem sua política de relaxamento, é vista como ponto-chave para o futuro da pandemia no país.

No mundo inteiro, já existe uma nova onda determinada pela Delta. No Brasil, a dinâmica das próximas semanas será determinada pela disputa dela com a Gamma, predominante aqui, somada à velocidade da vacinação. Não há como fazer previsões, é isso que vai decidir se teremos uma nova explosão.
Miguel Nicolelis, neurocientista

Apesar da queda nos indicadores, o Brasil continua com patamares altos da pandemia. Já são 178 dias (ou quase seis meses) com a média móvel de óbitos acima de mil.

"Isso de que estamos com indicadores muito bons, enquanto temos mais de 1.200 pessoas morrendo por dia, é o absurdo que repetimos em outubro", afirma Domingos Alves, professor da FMUSP-Ribeirão, referindo-se à queda dos indicadores no final do ano passado, antes da segunda onda.

"O Rio de Janeiro vai anunciar na próxima semana a transmissão comunitária da Delta e, na sequência, São Paulo. O fim da pandemia não vai acontecer tão cedo", afirma ele.

Hallal avalia, no entanto, que o Brasil deverá experimentar situação semelhante à do Reino Unido e da Holanda, que, com a Delta, voltaram a apresentar picos de casos, mas com internações e mortes controladas, devido à vacinação. "É o futuro. Alguns surtos isolados, mas com baixo número de mortes", afirma o epidemiologista.

"Os países mais atingidos já passaram dos 60% de imunização. O Brasil está em 15% e ainda não se defrontou com a Delta. Com a velocidade que estamos, se ela ganha da Gamma, poderemos ter indicadores com os níveis de março e abril", discorda Nicolelis.

OMS abandonou previsões

Em agosto de 2020, antes das primeiras vacinas, a OMS previa que a pandemia poderia estar controlada até meados de 2022 no mundo. A perspectiva era de que a crise sanitária duraria dois anos. A perspectiva de erradicar o vírus era considerada como uma missão impossível. Mas um controle seria possível, com o mundo sendo preparado para conviver com o vírus.

Naquele momento, as variantes eram ainda apenas uma ameaça. Hoje, elas são realidades que colocam em risco os planos de controle da doença. De acordo com a OMS, a variante Delta já é predominante e está presente em mais de cem países.

Também havia a perspectiva de que, uma vez descobertas, as vacinas seriam distribuídas de forma igualitária pelo mundo, algo que jamais ocorreu. Hoje, a esperança da OMS é que 10% da população de cada país possa ser vacinada até setembro. Mas dezenas deles continuam a ter apenas 1% ou 2% de seus habitantes imunizados.

Nos últimos dias, o comitê de emergência da OMS fez um alerta em um tom radicalmente diferente: o fim da pandemia está longe de ser declarado.

Nesta sexta-feira, Christian Lindmeier, porta-voz da OMS, também abandonou a referência a qualquer calendário. "Temos dito que o fim da pandemia está em nossas mãos e pode ocorrer rapidamente se agirmos de forma coordenada, usando todos os instrumentos", disse.

Mas, segundo ele, os números não são otimistas. "As vacinas significam uma queda de hospitalização e de mortes. Mas, pela quarta semana consecutiva, os números de novas infecções continuam a aumentar", alertou.

"Sem fixar nenhum calendário, a realidade é que nenhum país terminará sozinho com a pandemia", afirmou. Para ele, governos precisam continuar a adotar medidas de distanciamento social, rastrear casos e isolar pessoas contaminadas.

Sem medidas restritivas, indicadores podem voltar a explodir

A queda dos indicadores também não indica o controle da pandemia. De acordo com projeções da Universidade de Washington (EUA), se este ritmo se mantiver, o Brasil deverá totalizar 603 mil mortos de covid em 1º de outubro.

Projeções de morte por covid no Brasil - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

No entanto, se todos os cuidados forem abandonados, este número pode ser ainda maior, de 667 mil mortos em 1º de outubro. Com o uso universal de máscara e isolamento social, por sua vez, cairia para 583 mil.

"Mas essa projeção não leva em consideração a proliferação da Delta nem a falência do sistema de saúde. Em um país em colapso, com equipes médicas depauperadas e falta de leitos e de medicamentos, qualquer subida de casos tem somatória não linear", afirma Nicolelis. Segundo o relatório da Fiocruz, só sete estados estão com ocupação de UTI (Unidades de Terapia Intensiva) abaixo de 60%.

Quando fazemos uma análise de risco, o Brasil tem todos os fatores [ruins para a pandemia]: falta de isolamento social, vacinação baixa e presença da Delta.
Miguel Nicolelis, neurocientista

projeção de mortes diárias por covid-19 no Brasil - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Não há precedentes para o Carnaval pós-pandemia

Mesmo em uma situação mais controlada, as festas de Réveillon e o Carnaval trazem uma preocupação diferente: sem qualquer distanciamento ou proteção, seria um evento ainda inédito no mundo pós-pandemia.

Poucos lugares no mundo têm mega-aglomerações como o Carnaval. Nada na Europa ou Estados Unidos pode ser comparado: são milhões de pessoas reunidas em todo o país. Isso cria uma circulação ainda sem precedentes para o vírus. É algo que a ciência ainda não consegue estimar o efeito, por isso é complicado [de liberar].
Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo

Para o epidemiologista, os dois eventos têm ainda o fator crítico de circulação de pessoas do mundo inteiro. "O Brasil já é o maior experimento de circulação de vírus do mundo, com muitas variantes. Esses eventos têm turistas de todas as partes, imagina a concentração de variantes?", questiona.

Ele diz que os passos têm de ser dados aos poucos. "Com toda a população adulta vacinada, é possível discutir a suspensão do uso de máscaras ou das restrições de ocupação no locais, mas ainda não sabemos, no mundo, quando e o quanto vai ser possível voltar ao que era antes", conclui.

* Colaborou Nathan Lopes, em São Paulo