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Recuperados? Cálculo da Saúde exclui sequelas pós-covid e até mesmo mortes

Maria Vilma Moreno Pereira demorou semanas para se recuperar dos sintomas da covid-19, enquanto o marido João de Almeida Argôlo morreu em junho em decorrência das sequelas - Arquivo pessoal
Maria Vilma Moreno Pereira demorou semanas para se recuperar dos sintomas da covid-19, enquanto o marido João de Almeida Argôlo morreu em junho em decorrência das sequelas Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

15/08/2021 04h00

O atestado de óbito do aposentado João de Almeida Argôlo, 76, aponta insuficiência cardíaca como a causa de sua morte. Mas a suspeita do médico que o acompanhou é que a condição que o tirou de sua família seja uma sequela da covid-19. Já nos números oficiais do Ministério da Saúde, João é considerado um dos mais de 19 milhões de recuperados pela doença.

O aposentado recebeu o diagnóstico de coronavírus em 25 de fevereiro deste ano. Passou cinco dias internado, mas retornou para casa logo em seguida, apesar de ainda ter sintomas graves, como falta de ar. Morreu em junho, após muitas idas e vindas a hospitais de Guarulhos, na Grande São Paulo. "Já em casa foi quando a gente percebeu que a covid pegou ele legal", conta a filha Renata Pereira Argôlo, 36.

Ele começou a ter confusões mentais e falta de ar. Ficou à base de oxigênio por 15 dias em casa e com bastante confusão mental.
Renata Pereira Argôlo, assistente de sinistro

Renata Pereira Argôlo cuidou dos pais enquanto eles lidavam com as sequelas da covid-19 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Renata Pereira Argôlo cuidou dos pais enquanto eles lidavam com as sequelas da covid-19
Imagem: Arquivo pessoal

Ela conta que seu pai chegou a melhorar nos meses de abril e maio. Depois de ouvir até que sua tosse era emocional, um médico notou que o aposentado estava com o coração inchado e muito líquido nos pulmões, o que lhe causava insuficiência cardíaca.

"Perguntei ao médico se poderia ser uma consequência da covid e ele disse que era muito provável, pois desde aquela época meu pai tinha confusões mentais. Ele explicou que a confusão era devido ao líquido nos pulmões, que atrapalha a oxigenação do cérebro", aponta Renata.

O médico informou que, infelizmente, há muitas pessoas que, mesmo após meses da cura da covid, têm essa consequência do coração inchado e insuficiência cardíaca, o que está levando muitas pessoas a óbito.
Renata Pereira Argôlo, assistente de sinistro

A mãe de Renata, a dona de casa Maria Vilma Moreno Pereira, 68, foi outra a se contaminar e chegou a ficar 13 dias internada por uma trombose pulmonar.

Também ficou no oxigênio em casa devido à saturação muito baixa. A fadiga a acompanhou por semanas. A melhora só começou depois de 30 dias da alta hospitalar.

Enquanto integrantes do governo federal alardeiam a necessidade de celebrar a taxa de recuperados da doença, o Ministério da Saúde omite que o número, na verdade, é uma estimativa. Em resposta ao UOL via LAI (Lei de Acesso à Informação), o ministério explicou que o cálculo é simples: são considerados recuperados os casos de covid-19 que não estão em acompanhamento e que não vieram a óbito.

A conta utilizada pelo ministério exclui sequelas que afetam o dia a dia de quem já se infectou e até mesmo mortes em função destas sequelas —como pode ser o caso de João de Almeida Argôlo.

A quantidade de recuperados é destaque no Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, e também em informes diários do governo federal sobre a doença. Não há nos registros nenhuma explicação sobre os critérios para considerar uma pessoa como recuperada.

Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, dá destaque para a taxa de recuperados - Reprodução - Reprodução
Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, dá destaque para a taxa de recuperados
Imagem: Reprodução

O UOL questionou quantos dos casos recuperados vieram a óbito depois de terem alta e se havia registro de retornos aos serviços de saúde por reinfecção ou sequelas. O Ministério da Saúde argumentou que não poderia fornecer tais informações, pois elas demandam acesso a bancos de dados diferentes e contêm informações que permitiriam a identificação dos indivíduos, algo que infringiria a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

A reportagem solicitou ao ministério que retirasse ou colocasse tarjas em informações confidenciais e reforçou o pedido para entender o critério na classificação de recuperados. Em resposta, a pasta alegou que recebe os dados já consolidados das secretarias estaduais de saúde e de sistemas de informação nacionais.

Procurado pelo UOL, o Conass (Conselho Nacional de Secretarias de Saúde) declarou que não realiza o cálculo da taxa de recuperados e que não tem informações sobre a metodologia aplicada pelo Ministério da Saúde. O Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) não retornou sobre os pedidos da reportagem.

Como avaliar os casos pós-covid

"É uma doença malvada, traiçoeira, não é trivial. As pessoas estão tratando como se fosse uma brincadeira de criança", disse Linamara Rizzo Battistella, professora titular de fisiatria da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e idealizadora da Rede de Reabilitação Lucy Montoro.

Battistella e outros especialistas realizam um estudo multidisciplinar, em diversos centros de pesquisa, com mais de 3.000 pessoas que já tiveram covid. Eles avaliam sequelas e possíveis sintomas de longa duração entre seis e nove meses após a alta, e depois entre 12 e 15 meses da alta.

A fisiatra avalia que o dado de recuperados é importante, mas defende que seja feita uma "escala funcional pós-covid", como realizado no Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Os casos são distribuídos em cinco níveis, de 0 a 4, sendo zero o indivíduo que não apresentou nenhuma limitação em atividades corriqueiras nos primeiros três meses da alta hospitalar, e quatro um quadro em que a pessoa não consegue desempenhar tarefas sem ajuda.

Estar vivo não significa que você esteja produtivo.
Linamara Rizzo Battistella, fisiatra da FMUSP

Em entrevista ao jornal O Globo, a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Margareth Dalcolmo declarou que cerca de 80% dos pacientes que foram infectados e depois considerados recuperados tiveram sequelas comprometedoras.

Um artigo da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, aponta que ao menos 72,5% dos infectados com covid-19 apresentaram sequelas ou sintomas persistentes após 60 dias do diagnóstico ou mesmo 30 dias depois da recuperação ou alta hospitalar.

O estudo, publicado em maio, corresponde a uma revisão de 92 artigos científicos e reúne dados de mais de 9.000 pacientes em 15 países. Ele aponta para a necessidade de monitorar a longo prazo a população que já foi infectada pelo vírus.

Battistella endossa que as sequelas provocadas pela doença podem afetar a mesmo a economia do país.

"Se você não se preparar mais, além de onerar o sistema de saúde —o que já é um problema—, você ainda vai deixar o país nos limites de competitividade cada vez pior. Essas pessoas não voltam para a força de trabalho e consomem serviços, mas sem produzir", explicou.

A professora de yoga Lia Caldas, 47, teve dificuldades de continuar suas aulas mesmo meses após a infecção. Ela se contaminou no início da pandemia, em março de 2020, mas até hoje lida com consequências de saúde.

Eu não conseguia fazer grande parte das posturas de yoga que eu fazia, tive que adaptar a minha prática. E acho que só não fiquei pior porque me mantive ativa e tendo uma prática.
Lia Caldas, professora de yoga

Lia Caldas, 47, é professora de yoga e teve dificuldades de trabalhar com as sequelas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lia Caldas, 47, é professora de yoga e teve dificuldades de trabalhar com as sequelas
Imagem: Arquivo pessoal

Semanas depois da contaminação, ela continuou sentindo muito cansaço e dificuldade para respirar. Quando notou que novos sintomas estavam surgindo, decidiu buscar ajuda médica, já em dezembro de 2020. Os exames apontaram alterações nos rins e no fígado e um quadro grave de hipotireoidismo.

"Antes da covid, eu não tinha nada, estava bem, e de repente depois da covid estava com um monte de alteração [nos exames]", conta. A suspeita dela e da médica que a acompanhava é que o quadro era uma sequela da covid-19, mas não pôde ser comprovada porque Lia nunca conseguiu fazer o teste.

No início da pandemia, a orientação do Ministério da Saúde era que apenas casos graves procurassem ajuda médica e os insumos como testes eram escassos. Mesmo buscando no setor privado, a professora não conseguiu realizar o exame. Embora tenha tido todos os sintomas da doença, ela não consta nas estatísticas que o governo deveria priorizar.

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