Recorde de queixas, dívida e processos: qual o futuro dos planos de saúde?

Mesmo com aumento de clientes em 2023, o mercado de planos de saúde no Brasil coleciona indicadores ruins: registra alta de reclamações, aumento de decisões judiciais desfavoráveis e prejuízo financeiro recorde.

O que aconteceu

As reclamações contra os convênios batem recordes. As queixas aumentaram 120%, entre 2019 (antes da pandemia) e os dez primeiros meses de 2023. Elas passaram de 363 para 973 por dia, em média, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde).

As operadoras lideram o ranking de reclamações que considera outros setores da economia. Nos últimos 5 anos, só não estiveram no topo da lista em 2020 —durante a pandemia—, de acordo com o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

A principal reclamação é contra o "gerenciamento das ações de saúde". É o nome dado à maneira como a operadora se comporta quando recebe pedidos para autorizar procedimentos, como prévias para exames, ou quando o segurado precisa arcar com parte do procedimento.

Reembolso é a segunda reclamação mais frequente. O administrador José Eduardo Alalou, 38, diz não conseguir ressarcimento da Unimed Nacional. Seu filho nasceu, em junho, na Maternidade São Luiz Star —que, na época, concluía os trâmites para integrar o convênio. "O plano me aconselhou pagar e pedir reembolso", diz Alalou.

A conta de R$ 50 mil foi dividida no cartão de crédito. "Apresentei declaração da médica e do hospital sobre a internação, nota fiscal da prefeitura, relatórios do parto e as faturas do cartão, mas alegam falta de documento", reclama.

A Unimed Nacional disse que o hospital não faz parte de sua rede. Mesmo assim, afirma, em nota, que o reembolso será feito "o mais rapidamente possível" depois de analisar "a comprovação do desembolso".

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Condenações judiciais disparam

Os julgamentos de ações contra o setor aumentaram 239%, entre 2011 e 2021. Em 81% dos processos, o resultado é favorável ao paciente. Quando a queixa é sobre cobertura negada, esse percentual chega a 93%, segundo pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

A professora Regina Tarifa, 63, recorreu à Justiça para conseguir uma cirurgia. Em junho, a Hapvida NotreDame Intermédica negou uma tomografia porque o pedido de exame dizia que a paciente teve câncer de ovário 15 anos antes, diz a filha da professora, a criadora de conteúdo Míriam Castro, 31. "Vários exames foram negados ou demoravam tanto para autorizar, que pagamos particular."

Míriam com a mãe, Regina
Míriam com a mãe, Regina Imagem: Arquivo Pessoal

Quando o diagnóstico de câncer ginecológico saiu, o médico marcou cirurgia, mas a operadora negou. Regina buscou a Justiça, que concedeu liminar (decisão provisória) autorizando a operação, feita em outubro.

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A Hapvida disse que a cirurgia e exame foram negados em razão da "cobertura parcial temporária" da paciente. "Contudo, após uma reanálise da operadora, atividade comum para casos desse tipo, a paciente teve a sua cirurgia integralmente autorizada e realizada", diz em nota. "A companhia reforça que não houve o descumprimento de liminar."

Agora minha mãe fará quimioterapia. Se o convênio descumprir a liminar, que obriga a cobertura de 'tratamento posterior', voltamos à Justiça.
Míriam Castro

Prejuízo bilionário

As operadoras também registram recordes de prejuízo operacional —diferença entre as receitas e despesas. O déficit foi de R$ 10,7 bilhões em 2022, pior resultado da história. Esse rombo estava em R$ 9,5 bilhões nos 12 meses terminados no segundo trimestre de 2023.

O uso dos planos disparou depois da pandemia. Após o isolamento social, a utilização aumentou tanto que 89,2% das receitas com mensalidades foram gastas com atendimento médico em 2023.

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Fraudes e desperdício são maiores no Brasil. Eles consumiram R$ 34 bilhões no ano passado —12,7% do faturamento de R$ 270 bilhões das 14 maiores operadoras. Nos países desenvolvidos, esse índice gira em torno 7%, segundo estudo divulgado pelo IESS (instituto que pesquisa o setor).

Operadoras diminuem no país. A quantidade de empresas com clientes passou de 1.380 para 677, entre 1999 e setembro deste ano. Foram decretadas 93 liquidações extrajudiciais desde 2013, enquanto a ANS suspendeu 1.079 planos de 180 operadoras nos últimos cinco anos. Hoje, permanecem suspensos 356 planos de 21 operadoras.

População envelhece e planos encarecem. O custo médio de um paciente a partir dos 60 anos é seis vezes o de um segurado com até 18 anos. Acontece que o Brasil envelhece rápido: se em 1980 4% da população tinha 65 anos ou mais, esse índice será de 18,6% em 2033, ou 41,5 milhões de pessoas, diz o IBGE.

A mensalidade é cada vez mais cara. A média de reajuste de nove dos principais planos de saúde acumulou alta de 367,5% nos últimos dez anos, segundo a corretora Halembeck Seguros. No mesmo período, a inflação oficial (IPCA) foi 58,4%. Só em dezembro de 2022, a chamada inflação médica foi de 14,9%, contra 5,7% do IPCA.

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Modelo de negócio envelheceu

Quantos mais procedimentos hospitalares, maior a despesa das operadoras
Quantos mais procedimentos hospitalares, maior a despesa das operadoras Imagem: Pedro Ventura/Agência Brasília

A remuneração a hospitais e médicos é antiquada. As operadoras brasileiras utilizam o chamado fee for service (taxa de serviço), quando o pagamento ao profissional, hospitais e laboratórios depende de quantas vezes o serviço foi utilizado, sem levar em conta a qualidade. O médico que realiza quatro atendimentos por hora em consultas de 15 minutos é menos lucrativo do que aquele que consulta 12 pessoas em atendimentos de 5 minutos.

O mesmo vale para serviços hospitalares e exame. Os médicos abusam da prescrição de testes laboratoriais: 40% dos exames no Brasil são desnecessários, consumindo R$ 12 bilhões ao ano, diz o IESS.

Convênios demoram a adotar medicina preventiva. No Brasil, o médico especialista (mais caro) é visto como de melhor qualidade, enquanto países desenvolvidos preferem os generalistas. Por lá, o investimento é na saúde preventiva com o médico de família, que acompanha o paciente ao longo da vida, um modelo com eficácia acima de 85%, segundo o pesquisador Ademir Lopes Júnior (USP).

As operadoras são mal geridas no Brasil. Elas contratam hospitais, médicos, laboratórios e vão empurrando com a barriga um modelo obsoleto. Se há uma crise no setor, ela já é crônica.
Ligia Bahia, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

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"É insustentável"

As operadoras culpam a preferência do brasileiro por médicos especialistas. "O atual modelo é insustentável, mas gera a sensação de que existe acesso aos serviços", admite Marcos Novais, superintendente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde). "Se oferecer ao brasileiro um plano com médico de família e outro tradicional, ele compra o segundo."

Tem de haver um acordo social para mudar essa percepção. As mudanças começaram, mas leva tempo mudar a cultura e formar médicos generalistas, em falta no Brasil.
Marcos Novais, da Abramge

Será difícil ter plano de saúde no futuro. "Se nada mudar, ter um plano será insustentável não só para o idoso, mas para diversas faixas de idade", diz Novais. "Os tratamentos de doenças raras já são um desafio desde os primeiros anos de vida."

Exames desnecessários consomem bilhões de reais
Exames desnecessários consomem bilhões de reais Imagem: Divulgação

Novais critica o excesso de fraudes. "As pessoas vão à consulta e pegam dois recibos, ou fazem tratamentos estéticos com reembolso de consulta e exame", diz.

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Novais diz que a incorporação de tratamentos cada vez mais caros sem comprovar que seus resultados são superiores ao de terapias mais baratas é preocupante. "E o debate técnico na ANS fica prejudicado por conta de incorporação obrigatória quando esses tratamentos e/ou procedimentos são aprovados via Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) ou por força de Lei".

Questionada, a ANS afirma que "faz rigorosa análise técnica e a submete a consulta pública pelo período de 20 dias", com participação social "inclusive das operadoras e suas associações". Diz ainda que as mudanças passam pela Cosaúde, comitê formado por representantes do setor.

O pós-covid-19 responderia por parte do rombo do setor. "Houve mais internação, uso de pronto socorro, doenças diagnosticadas tardiamente, e a mensalidade ficou defasada."

Isso tudo veio junto e agora temos déficits operacionais insustentáveis, não há solvência com esse nível de déficit.
Marcos Novais

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