Marcados para morrer, doentes sem chance de cura encaram dilema de longo caminho até a morte
No ano passado, os médicos de Ricky Hurst disseram que não havia mais nada que pudessem fazer. Seu coração vinha falhando, e ele devia deixar seus negócios organizados. O fim estava próximo.
Sua família se reuniu. Ele falou com o pastor e se resignou com a morte. "Se tinha que ser, tinha que ser", diz.
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Mas Hurst, 56, que foi guarda florestal e técnico de futebol em Jackson, no Michigan (EUA), ainda está vivo, embora seu coração continue a enfraquecer. E pacientes como ele estão criando um novo dilema para os médicos.
As doenças do coração antes matavam de maneira implacável e rápida. Pacientes como Hurst sucumbiam a ataques do coração e mortes súbitas por parada cardíaca. Porém, com cuidados médicos melhores e equipamentos implantados que reforçam o órgão, um número cada vez maior de pacientes sobrevive por anos e mesmo por décadas, lidando com uma condição crônica e progressiva pontuada por crises e hospitalizações.
Quando chega nesse ponto, a doença se chama insuficiência cardíaca: o coração enfraquecido não pode mais bombear sangue suficiente para suprir as necessidades do corpo. O número de norte-americanos com insuficiência cardíaca aumentou de 5,7 milhões entre 2009 e 2012 para 6,5 milhões entre 2011-2014, segundo a Associação Americana do Coração.
Mais de 10% das pessoas com mais de 80 anos têm insuficiência cardíaca, e um número maior de pacientes está vivendo mais tempo com a doença em estágio avançado. Enquanto a taxa de mortalidade por ataque cardíaco vem diminuindo, o número de pessoas com insuficiência aumenta a cada ano.
No entanto, não existem diretrizes aceitas amplamente de como lidar com esses pacientes quando estão perto da morte. Especialistas em câncer costumam colocar seus pacientes em uma casa de saúde no final da vida, por exemplo, mas poucos cardiologistas pensam nisso. Pacientes do coração são apenas 15% dos mortos nessas casas, enquanto aqueles com câncer são metade, segundo um estudo recente.
Abandonados no final da vida
Essa pesquisa, publicada no periódico "Journal of the American College of Cardiology", revelou as várias maneiras em que os pacientes cardíacos são abandonados no final da vida. Desfibriladores implantados em geral são mantidos ativados até ao final, por exemplo, mesmo para aqueles que se mudaram para lares de idosos.
Um quinto dos pacientes com desfibriladores levam choques dos equipamentos nas últimas semanas de vida, e 8% nos minutos finais. A maioria deles nunca fica sabendo que poderia pedir para que os desfibriladores fossem desligados.
"Levar choques no final da vida não está realmente ajudando os pacientes a viver mais ou melhor", diz o doutor Larry Allen, especialista em insuficiência cardíaca da Universidade do Colorado e um dos autores do estudo.
"Nenhum desses casos deveria acontecer", afirma o doutor Haider Warraich, cardiologista da Universidade Duke e primeiro autor do estudo.
Foco na prevenção
Os especialistas em geral focam nos passos feitos para prevenir e tratar as doenças cardíacas. A incidência caiu 70% nos últimos 50 anos. As pessoas sofrem ataques do coração mais tarde do que antes, têm mais probabilidade de sobreviver a eles e frequentemente vivem por anos com poucos sintomas ou sem sentir nada.
"Estamos muito orgulhosos desse progresso", segundo a doutora Patrice Desvigne-Nickens, médica do Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue.
Ainda assim, diz ela, os cardiologistas e seus pacientes deveriam discutir as opções para o final da vida e os cuidados paliativos mais cedo no decorrer da doença.
"Todo mundo fica desconfortável com as discussões sobre o final da vida. O campo do câncer está mais avançado que o nosso. Deveríamos aprender seguindo o exemplo deles", acredita.
Os cardiologistas gostam da maneira dramática como salvam vidas, explica o doutor Michael Bristow, cardiologista da Universidade do Colorado em Denver. Eles devotam suas vidas profissionais a resgatar pacientes que estão tendo ataques do coração e a trazê-los de volta.
Os cuidados de fim da vida não estão normalmente em seu foco; assim como passar tempo pensando sobre o que seus pacientes vão experimentar no futuro. "Aqueles que optam pela cardiologia não são necessariamente os profissionais que querem lidar com a morte e o ato de morrer", diz Bristow.
A própria natureza dos estágios finais da insuficiência cardíaca dificulta a preparação.
"Poucos pacientes compreendem a trajetória da doença", relata a doutora Lynne Warner Stevenson, especialista em insuficiência cardíaca na Universidade Vanderbilt. O caminho tem picos e vales, mas, à medida que o paciente piora, cada pico é mais baixo do que o anterior.
E com frequência os médicos não contam ao paciente o que pode acontecer.
"Infelizmente, quando você tem pacientes com uma doença crônica como a insuficiência cardíaca, todo mundo pensa que outra pessoa vai falar sobre isso. Em geral, ninguém toma conta dos estágios finais da jornada com o paciente", explica Stevenson.
A doutora Ellen Hummel, da Universidade de Michigan, uma entre os poucos médicos especializados em cuidados paliativos em cardiologia, explica que o paciente típico com câncer normalmente experimenta um declínio "bastante previsível".
"Eles ficarão menos capazes de tomar conta de si mesmos. Vão ter mais sintomas e virão ao hospital com mais frequência. E assim que isso começa, provavelmente vai continuar até que morram. A maioria das pessoas pode ver o fim chegando", conta.
Os pacientes com insuficiência cardíaca em estágios finais, porém, são propensos a ter mudanças mais profundas, segundo Hummel, sentindo-se bem e logo depois muito mal.
"É confuso tanto para o paciente quanto para quem está cuidando. Ele está realmente morrendo ou podemos recuperá-lo de um episódio específico de piora?"
O doutor Harlan Krumholz, cardiologista da Universidade Yale, concorda:
A questão é saber quem realmente está no final da vida".
Para pessoas com insuficiência cardíaca, que passam sucessivamente por períodos bons e ruins, pode ser muito difícil dizer.
Recentemente, Allen discutiu o assunto com um paciente, Ed Harvey.
Harvey, 75, tem um desfibrilador implantado, e seu coração vem enfraquecendo, bombeando cada vez menos sangue. Allen lhe deu remédios que ajudaram por um tempo, mas, segundo ele, "maximizamos o que poderia ser feito".
O médico não pode dizer com certeza quando tempo Harvey tem. Mas agora é a hora, Allen disse a ele, de falar sobre o final da vida.
Harvey ainda se sente muito bem, mas, "quando você tem insuficiência congestiva do coração, não vai ficar melhor, você sabe que o dia está chegando", diz ele.
Ele tem vivido com a doença por mais de uma década, e o medo está se tornando um peso à medida que seu coração fica pior. Agora, está tão fraco que a única opção médica é implantar uma bomba. Ele sabe, porém, que logo vai precisar de cuidados em tempo integral.
"Se chegar a esse ponto, prefiro ir para uma casa de saúde antes de partir", afirma Harvey.
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