Topo

A lembrança ainda viva de vítimas e carrascos do terror stalinista

23/12/2016 12h26

Moscou, 23 dez 2016 (AFP) - "Era um caso como o de todos os dias, tão comum nessa época", comenta Andrei Kolesnikov, lendo as cartas enviadas por seu avô do campo de trabalho forçado soviético, onde faleceu nos anos do stalinismo.

Há 80 anos, o terror stalinista estava no auge. Para trás ficaram milhões de mortos e de executados, e pessoas foram enviadas para o Gulag, deportadas para regiões insalubres, ou morreram de fome.

Embora o sistema soviético tenha deixado de existir há 25 anos depois do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o tempo que passou ainda não fechou as feridas.

Nos últimos anos, a busca da verdade histórica e do trabalho de memória se tornaram difíceis - sobretudo, desde que o presidente Vladimir Putin começou a minimizar as páginas mais sombrias do passado pelo interesse da unidade nacional.

A Memorial, organização de defesa dos direitos humanos que estuda a repressão na época soviética, disponibilizou on-line, em novembro passado, uma base de dados com informações de cerca de 40.000 agentes da Polícia Secreta, o temido NKDV (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), nos anos 1935-1939.

Dessa forma, Andrei Kolesnikov conseguiu saber quais foram os sete, ou oito, homens responsáveis pela detenção de seu avô, David Traub, em 1938.

"Essas pessoas tiveram destinos muito diferentes", explica Kolesnikov, pesquisador do Carnegie Center.

Alguns foram executados, vítimas da mesma repressão que eles aplicavam, outros foram condecorados como heróis durante a Segunda Guerra Mundial.

David Traub era um arquiteto que foi acusado de se opor ao poder comunista.

Kolesnikov suspeita, porém, que ele tenha sido preso por outros motivos, ou para completar a cota de presos da região báltica, ou por vingança pessoal, como costumava acontecer nessa época, na qual o regime fomentava a delação.

Traub faleceu oito anos depois de ser deportado para um campo de trabalho na Sibéria.

A iniciativa da Memorial despertou o interesse dos descendentes das vítimas, mas também dos filhos e netos dos agentes do NKVD, afirmou Arseni Roguinski, presidente do conselho de administração da ONG.

O projeto preenche um "espaço vazio" na memória coletiva, e que se refere aos executores da repressão.

"Nossa lista de vítimas contém milhões de nomes, mas nunca suscitou tal discussão", disse Roguinski.

O Kremlin procurou se distanciar da iniciativa de Memorial.

"É um tema muito sensível", disse o porta-voz do presidente Putin, Dmitri Peskov.

"Existem pontos de vista diametralmente opostos, e os dois lados têm bons argumentos", afirmou.

Vladimir Putin e muitos dos atuais dirigentes russos foram funcionários da KGB (Comitê para a Segurança do Estado), a estrutura que sucedeu ao NKVD em 1954.

Durante vários anos, Putin também dirigiu a FSB (Serviço Federal de Segurança) da Rússia, que assumiu o lugar da KGB, após a dissolução da URSS.

O presidente russo insiste na necessidade de "unidade" na sociedade russa, o que é usado como justificativa para asfixiar qualquer oposição.

Para forjar essa coesão, as autoridades não param de glorificar a vitória da União Soviética, dirigida por Stalin, contra a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

A repressão stalinista deu lugar a dois períodos de introspecção nacional. O primeiro foi desencadeado pelo sucessor de Stalin, Nikita Kruschov, depois da morte do ditador em 1953.

O segundo foi provocado pelo último presidente da URSS, Mikhail Gorbachov. Ao chegar ao poder, ele implementou as políticas de Perestroika (reestruturação) e Glasnot (transparência).

Agora, 25 anos depois do desaparecimento do Império soviético, o passado continua ressonando na sociedade russa - às vezes de forma contraditória.

Um quarto dos russos considera que a repressão stalinista se justifica, segundo uma pesquisa de opinião do centro independente Levada.

Ao mesmo tempo, um jovem (de 18 a 24 anos) em cada cinco nunca ouviu falar da repressão stalinista.

Em Moscou, quase ao mesmo tempo, inaugurou-se um novo museu sobre o Gulag (campo de trabalho forçado), assim como um restaurante chamado NKDV, que tem seu cardápio decorado com fotos de Stalin.

Para Andrei Kolesnikov, mergulhar no passado é imperativo para encontrar as respostas às perguntas que persistem sobre o destino de seu avô, reabilitado postumamente em 1955.

Também é importante, segundo ele, coletivamente, "para compreender que nem tudo foram vitórias e que as repressões constituíram derrotas".

"O país deve passar por certo arrependimento, uma espécie de catarse e, nesse momento, se transformará em uma verdadeira nação", sustentou.