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Decisão de presidente italiano pode alimentar ressentimento dos eleitores

28/05/2018 12h52

Paris, 28 Mai 2018 (AFP) - A decisão do presidente italiano de nomear um ex-executivo do FMI para chefe de Governo, sem maioria parlamentar, é uma nova ilustração do delicado respeito à vontade popular em um sistema institucional complexo e pode alimentar o ressentimento dos eleitores.

O presidente italiano, Sergio Mattarella, nomeou Carlo Cottarelli para formar um governo. O perfil deste ex-Fundo Monetário Internacional está a mil léguas das aspirações expressas pelos eleitores italianos que elegeram um Parlamento predominantemente populista e antissistema.

A manobra provocou uma enxurrada de críticas.

"A União Europeia e os mercados financeiros estão confiscando novamente a democracia. O que acontece na Itália é um golpe de Estado, um assalto por instituições ilegítimas. Diante desta negação da democracia, a ira dos povos cresce em toda a Europa!", escreveu a presidente do partido francês de extrema-direita Frente Nacional, Marine Le Pen, no Twitter.

"O que aconteceu ontem é repugnante, a Itália está vivendo um momento histórico, porque o povo queria recuperar o país, mas perdeu sua soberania", reagiu o ultraconservador Steve Bannon, ex-conselheiro sênior da Casa Branca de Donald Trump, durante um debate no centro de Estudos Americanos em Roma.

Nas próximas eleições, o chefe do partido de extrema-direita Liga, Matteo Salvini, vai-se apresentar como "o defensor democracia contra o 'establishment' profundo", estima Yanis Varoufakis, ex-ministro grego das Finanças.

Alguns, como o presidente francês, Emmanuel Macron, elogiam a "coragem" e a "responsabilidade" de Mattarella, mas os especialistas entrevistados pela AFP acreditam que a decisão estimulará o ressentimento dos eleitores.

- 'Vai piorar' -Apesar de a decisão ser legalmente consistente, "o argumento da negação da democracia é o que saltará aos olhos", aponta Elsa Bernard, professora de Direito europeu na Universidade de Lille (norte da França).

"No longo prazo, vão ser os populistas que se beneficiarão porque (eles) apresentarão essa decisão como um golpe contra a democracia" nas próximas eleições, acredita Pawel Tokarski, pesquisador encarregado da zona do euro no Instituto Alemão de Relações Internacionais e Segurança (SWP).

O Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman também reagiu no Twitter, lamentando que "as instituições europeias sofram com a falta de legitimidade por causa de seu déficit democrático. E isso vai piorar".

Não é a primeira vez que as estruturas políticas europeias, nacionais, ou da União, criam manobras para contornar a expressão de uma vontade popular que contraria as orientações de suas políticas.

Em 1992, os dinamarqueses votaram "não" no referendo sobre o Tratado de Maastricht. Eles tiveram de votar novamente em 1993. Em 2005, os franceses votaram "não" ao tratado da Constituição Europeia. O texto voltou na forma do Tratado de Lisboa para continuar o movimento.

Os irlandeses votaram duas vezes contra dois tratados europeus. Sobre o Tratado de Nice em 2001 e em 2002, e depois sobre o Tratado de Lisboa em 2008 e 2009, já que seus líderes ficaram insatisfeitos a cada vez com o primeiro resultado negativo.

A crise grega também foi eloquente. A vontade dos gregos de rejeitarem por referendo as propostas da Troika em 5 de julho de 2015 foi retirada durante uma cúpula em Bruxelas, em 13 de julho, resultando na permanência sob condições da Grécia na zona do euro.

- 'Histeria do discurso econômico' -Na Itália, "Matarella foi encurralado pela histeria do discurso econômico (...) é um presente para aqueles que criticam as finanças internacionais", estima Catherine Fieschi, diretora da empresa Counterpoint, com sede em Londres.

Especialmente porque as instituições se tornaram míopes por "sua visão simplista" sobre este ponto.

"Se o Brexit demonstra alguma coisa, é que os eleitores são, por vezes, bastante insensíveis aos perigos econômicos e estão dispostos a pagar (literalmente) por um retrocesso puramente político", ela considera.

"A grande fraqueza das nossas instituições europeias e nacionais é (...) reduzir o eleitorado a seres puramente econômicos", completou.

Outro aspecto do problema é a própria definição de democracia.

"O que é democracia? É apenas o governo do povo, pelo povo e para o povo? Hitler chegou assim ao poder", ressalta Bernard, acrescentando que uma outra concepção, correspondente ao conceito de democracia liberal prevalecente nos países ocidentais, acrescenta o respeito dos direitos fundamentais.

"As pessoas podem ser a favor de medidas que violem os direitos fundamentais, mas quem pode dizer às pessoas 'vocês estão erradas'?", acrescentou.