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'A gente foi defenestrada da política pública', diz secretária LGBTQIA+

Symmy Larrat, a secretária nacional LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos - 25.jan.2023 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Symmy Larrat, a secretária nacional LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos Imagem: 25.jan.2023 - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Vinícius Lisboa

No Rio de Janeiro

25/01/2023 12h55Atualizada em 25/01/2023 14h19

A travesti paraense Symmy Larrat foi nomeada ontem para a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, do MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania). Essa será a segunda passagem da ativista pela administração federal em menos de 10 anos.

O cenário encontrado por ela, entretanto, é totalmente diferente daquele em que trabalhou na primeira vez, entre 2015 e 2016, quando assumiu a Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A sigla LGBTQIA+ inclui pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexo e assexuadas, entre outras categorias.

"A gente tinha um prosseguimento a um período de ampliação da política pública", lembra em entrevista à Agência Brasil, na Semana da Visibilidade Trans.

"Hoje, a gente chega em um cenário de terra arrasada, em que a gente [população LGBTQIA+] foi defenestrada da política pública".

A secretária afirma que até mesmo os dados disponíveis no Disque 100, serviço que recebe denúncias de violações aos direitos humanos, mostram a invisibilização da população LGBTQIA+ - um "apagamento" que, segundo ela, também ocorreu em áreas como o fomento à cultura. "A gente não tem muita informação, porque a gente foi apagada".

Pioneira

Primeira travesti a ocupar um cargo no segundo escalão do governo federal, Simmy Larrat afirma sentir certo incômodo com o pioneirismo - uma amostra, segundo ela, de que ainda é necessário um longo caminho para inclusão de pessoas trans em espaços de prestígio.

"Falar que é a primeira demarca, mas não é algo muito cômodo pra gente. Dói dizer que somos as primeiras", reconhece ela, que também foi a primeira travesti a presidir a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), depois que deixou o governo federal.

Após a eleição de 2022, Symmy colaborou com o Grupo Técnico de Direitos Humanos do Gabinete de Transição.

O relatório final sobre o tema acusou o governo anterior de "revisionismo do significado histórico e civilizatório dos direitos humanos", além de restrição à participação social e a baixa execução orçamentária, o que culminou, entre outros problemas, na descontinuidade de políticas para a população LGBTQIA+.

Desde o último dia 20, o MDHC promove a campanha virtual "Construir para Reconstruir" com o intuito de marcar a semana do Dia da Visibilidade Trans, celebrado no Brasil em 29 de janeiro.

A ação, que tem Simmy Larrat como porta-voz, acontece nas redes sociais e conta com uma série de publicações destacando os avanços legais em âmbito nacional, além de exemplos internacionais de referência para o Brasil.

O dia 29 de janeiro foi escolhido para lembrar uma mobilização ocorrida, em 2004, na Câmara dos Deputados, para a campanha "Travesti e Respeito", que levou a um inédito ato de pessoas trans no Congresso Nacional.

Confira os principais trechos da entrevista concedida pela secretária à Agência Brasil:

Qual é o retrato da situação que você encontrou ao chegar ao governo federal?

A gente passou por um processo de muita invisibilidade. E o que a gente encontra é isso. A gente não tem muita informação, porque a gente foi apagada do cenário. O que a gente está fazendo é planejar o que podemos construir de políticas públicas, a partir do que a gente entende como visibilidade dessa população.

Como você compararia a situação que encontrada na sua outra passagem pelo governo federal com o cenário de hoje?

A gente tinha um prosseguimento a um período de ampliação da política pública. Mas também fui coordenadora em um período de muita perseguição. Já estava se preparando um golpe neste país. Hoje, a gente chega em um cenário de terra arrasada, em que a gente foi defenestrado da política pública. Mas, mesmo com essa perseguição moral do campo do ódio, a gente tem um sentimento de que a gente pode avançar, porque a gente vem em um cenário de composição política ampla, de retomada da democracia no país.

A secretaria ainda está em construção? Como está esse trabalho?

A gente está em um momento de composição. Diferentemente de outras secretarias, nós somos uma secretaria que não existia. A nossa equipe ainda está sendo nomeada. Juridicamente, havia um prazo que a gente tinha que esperar. As estruturas novas levam um tempo para existir de fato no sistema da Esplanada. A gente passou por um período de muito planejamento e ainda estamos nessa parte de planejamento, mas a nossa equipe começa a chegar. Hoje [ontem] mesmo fui nomeada com o nome oficial da secretaria.

Qual vai ser o primeiro passo da secretaria?

O primeiro passo é planejar e identificar a fundo onde a gente foi apagada, para retomar e planejar como fazer isso. Agora, tem algumas emergências que a gente está identificando desde a transição, que é a retomada da participação social, que é algo que já está em encaminhamento. A gente espera ter a retomada do Conselho Nacional [dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+] nos próximos dias, e a elaboração das normativas necessárias para a implementação da decisão do STF acerca da homotransfobia, que, na nossa visão, são emergenciais nesse processo. São demandas muito latentes a que a gente precisa dar encaminhamento no próximo período, e a gente já vem construindo as pontes necessárias para que isso aconteça.

O conselho já está com sua composição definida?

O conselho não é publicado com os nomes, e, sim, é publicado o decreto da constituição do conselho. Até porque estamos constituindo um conselho novo, a gente não está voltando para o que era anteriormente. A gente vai ampliar o escopo do conselho. A gente constitui um conselho que, inclusive em seu nome, traz as LGBTQIA+. Não é mais só combate à discriminação. É um conselho que vai sair completamente do armário.

As normativas sobre a homotransfobia vão orientar o combate a esse crime?

O governo tem que dizer como as unidades da federação têm que atuar. A gente tem que dizer como é o atendimento, como é a tipificação, que campos têm que existir na denúncia. São normativas no campo do atendimento, do sistema, da investigação, quais encaminhamentos têm que se dar. É uma orientação para que a gente consiga isso, na estrutura da segurança pública e da justiça. O governo federal tem que passar uma orientação para todo o sistema de segurança do país.

As maiores conquistas da população LGBQTIA+ no Brasil se deram via Judiciário. Como o Poder Executivo pode fortalecer essas conquistas e garanti-las de possíveis ataques?

As principais decisões do STF [Supremo Tribunal Federal] aconteceram nesse período, sobretudo a permissão de retificação de nome e gênero [2018] e a criminalização da homotransfobia [2019]. Primeiro, o governo desse período se colocou como contrário. E, segundo, ele não criou na sua área de responsabilidade os caminhos para que isso acontecesse. A nossa postura tem que estar justamente aí. Se tem a criminalização da homotransfobia, o nosso papel de gestão é dizer como ela vai ser executada. Não teve, até hoje, nenhuma normativa que explique aos estados como eles devem fazer. Assim como na retificação não houve um diálogo com o sistema de justiça para que a gente diga como vamos dar conta de promover o acesso da população a esse serviço. É nesse lugar que queremos atuar.

O custo e a burocracia para retificação são queixas constantes da população trans. Está sendo discutida uma forma de tornar o processo mais fácil?

A gente tem que iniciar um diálogo. A normativa foi feita exclusivamente pelo Conselho Nacional de Justiça. O nosso papel é dialogar com esse sistema, porque isso é responsabilidade de outro poder. O que a gente pode pensar é em como facilitar o acesso das pessoas a essas demandas e a essas exigências. E é isso que a gente vai fazer. Então, a gente vai estabelecer o diálogo com o sistema de justiça para entender como a gente pode facilitar. E tem outras coisas que podem ser feitas via Executivo: se a gente olha a rede de assistência social, a gente sabe que existe isenção para certos documentos, e isso não está sendo acessado pela população transgênera. Então, a gente tem que debater esses dois aspectos.

Qual foi o prejuízo desse apagamento da população LGBTQIA+ na área da cultura e o que pode ser feito para reverter isso?

O prejuízo é gigantesco, porque é a cultura e a educação que conseguem fazer uma mudança, uma disputa de sociedade. É através desses elementos. Para nós, foi uma perda gigantesca não estar ocupando esse espaço. Mas algumas estratégias eu acho interessantes: a primeira é a retomada da participação social em todas essas áreas. A cultura tinha um comitê técnico LGBTQIA+, que ajudava, dentro da estrutura dos ministérios, a identificar onde a gente podia avançar, colaborar e existir. E a outra é a mudança na condução desse processo. Quando a gente vê uma ministra como a Margareth Menezes, que sempre fez campanhas contra a violência contra a população LGBTQIA+ no período do carnaval, a gente tem a confiança de que essa postura vai ser alterada com muita brevidade.

Há uma preocupação constante de ativistas e pesquisadores sobre a saúde mental da população LGBTQIA+. Esse é um dos pontos prioritários?

A saúde mental sempre foi um tema muito importante, mas é um tema que tem que vir transversalmente. Quando a gente fala de cultura, a gente também está falando de saúde mental, por exemplo. E no que concerne ao atendimento de ponta, eu acho que a gente tem que retomar um investimento em algumas áreas que atendiam no campo da saúde mental, como o processo transexualizador, a volta do investimento em centros de acolhimento à população LGBTQIA+, e debater o atendimento da população em todos os espaços de saúde. Debater no campo da saúde, é debater a saúde integral, em todos os aspectos da saúde, inclusive a saúde mental.

Que mensagem você gostaria que seu pioneirismo, como primeira pessoa trans a ocupar um cargo no segundo escalão do governo federal, deixasse para a população transexual?

Primeiro, as pessoas têm que saber que quando a gente é a primeira, a gente só afirma esse discurso para demarcar um lugar. Eu, particularmente, gostaria que a gente não fosse a única, e que a gente não ocupasse só as pastas LGBTQIA+. Eu quero que as nossas pautas ocupem todos os outros espaços. Eu quero que, daqui a alguns anos, a gente comece a perceber que a gente não é mais a primeira nem a única, mas, sim, várias nesse lugar. Falar que é a primeira demarca, mas não é algo muito cômodo pra gente. Dói dizer que somos as primeiras. A gente precisa promover uma ocupação dessas pessoas em diversos lugares, para que a gente olhe para trás e reconheça a primeira, mas veja que somos muitas nesses lugares. É nesse lugar que a gente quer chegar.