Doria: Discurso negacionista de Bolsonaro dificulta fazer política de saúde
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), criticou o que chama de "negacionismo" por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e afirmou que esse comportamento dificulta "fazer uma política pública de saúde no estado". Em entrevista à ANSA, o tucano avaliou as ações de combate ao coronavírus e a viabilidade de uma vacina contra a covid-19 nos próximos meses.
O estado de São Paulo acumula mais de 866 mil casos e cerca de 32 mil mortes na pandemia do novo coronavírus, números superiores aos da Espanha, para citar um país de população equivalente.
Em índices relativos, são 69 óbitos para cada 100 mil habitantes, índice maior que a média brasileira (61/100 mil hab.) e de países como Reino Unido (63), Espanha (63) e Itália (59). Para o governador de São Paulo, "muito" dessa situação se deve à "falta de cuidado e de zelo e às informações erráticas emitidas pelo presidente da República", seu ex-aliado nas eleições de 2018.
"É muito difícil, com o discurso negacionista do presidente do Brasil, fazer uma política pública de saúde no estado", declarou o tucano.
Na entrevista, Doria falou sobre a preocupação com as aglomerações vistas nos feriados, o arrependimento de ter defendido o voto "Bolsodoria", a expectativa para a vacina da Sinovac e os motivos de não ter decretado um lockdown no estado.
ANSA - No último feriado, vimos muitas imagens de aglomerações, especialmente no litoral. O senhor teme que essa crescente sensação de que a pandemia já acabou possa provocar uma nova escalada dos casos?
João Doria - É preciso ter cuidado, muito cuidado. No caso de São Paulo, estamos na quinta semana consecutiva de redução de casos de infecção, óbitos e de ocupação de leitos de UTI no sistema público estadual, mas isto não implica em facilitação nem na decretação do fim da quarentena. Nós estamos em quarentena, o Plano São Paulo é um programa de quarentena. Ele tem as fases em cinco cores: vermelho, laranja, amarelo, verde e azul. Noventa e quatro por cento do estado está na fase amarela, mas isso não desobriga de atenção, tanto das autoridades públicas, do governo do estado e prefeituras, e principalmente o grau de consciência das pessoas. A consciência da população de que precisa se preservar, usar máscaras ao sair de casa, deve evitar aglomerações mesmo ao ar livre e ter hábitos de higiene, sobretudo em relação às mãos.
Cenas como as do último feriado podem levar o governo a restabelecer medidas restritivas?
Se necessário, sim. Nosso compromisso é com saúde e a vida das pessoas, não com a política nem com a economia. Se nós não tivermos pessoas com vida e com saúde, não teremos economia. Portanto, se tivermos de dar um passo atrás para preservar vidas de hoje e do amanhã, faremos.
Hoje o Brasil é o segundo país com mais mortes e o terceiro em casos em termos absolutos e também é um dos piores quando se leva em conta o tamanho da população. Apenas São Paulo tem 866 mil casos e quase 32 mil óbitos. O que deu errado?
Nós somos parte do Brasil. São Paulo não é uma nação independente. Vivemos em um país onde o presidente da República é negacionista, ele afirma que a covid-19 é uma gripezinha, um resfriado, não usa máscara, não obedece o distanciamento, promove aglomerações, estimula o consumo da cloroquina e disse que a vacina, só deve tomar quem quiser. Ou seja, é muito difícil, com o discurso negacionista do presidente do Brasil, fazer uma política pública de saúde no estado dizendo exatamente o oposto.
São dois discursos completamente diferentes, e isso dificulta muito o trabalho aqui em São Paulo. Mesmo assim, estamos hoje com resultados muito positivos. São Paulo tem 0,92 de [índice de] infecção, 717.423 pessoas já foram curadas do coronavírus em São Paulo, a maioria pelo sistema público de saúde. Em São Paulo, nunca faltou leito de UTI, ninguém ficou para trás, não tivemos que ter a opção entre a vida e a morte, todos foram atendidos, e a ampla maioria foi salva.
Tivemos 866 mil casos, e muito em função da falta de cuidado, da falta de zelo e de informações erráticas emitidas pelo próprio presidente da República. Isso dificulta o procedimento de orientação e conscientização da população.
O senhor se arrepende de ter defendido o voto "Bolsodoria" nas eleições de 2018?
Me arrependo, sim. Quando da campanha eleitoral, o Bolsonaro se apresentava como um candidato liberal, anti PT e contra posturas de corrupção do governo petista, apresentava um programa desestatizante, anticorrupção, anunciava que convidaria Sergio Moro para fazer parte do governo, que respeitaria a Operação Lava Jato e que defenderia a democracia no Brasil. Não foi preciso mais que três meses para ele revelar que não eram essas as suas intenções. Em menos de três meses de governo, já afrontava o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, falava em regime autoritário, em endurecimento de posições antidemocráticas, criticava a imprensa, ameaçava jornalistas, estimulava agressões e fake news. Já a partir do terceiro mês, me coloquei em outra posição e lamento profundamente que aquele candidato que eu acreditava que faria um governo transformador, inovador, liberal, decente, anticorrupção e defensor da democracia se posicionasse de outra maneira.
Esse descolamento em relação ao presidente Bolsonaro está ligado a uma eventual candidatura em 2022?
Da minha parte, não. O erro partiu do próprio presidente da República. É quase inconcebível que um presidente recém-eleito, em dois meses, já diga que será candidato à sua própria reeleição. Eu sou contra a reeleição. Não serei candidato à reeleição em São Paulo, como já tinha dito que não seria candidato à reeleição à Prefeitura de São Paulo. E qualquer posição relativa a 2022 deve ser avaliada a partir de janeiro de 2022, não agora.
O senhor manteve contato com autoridades italianas para tentar aproveitar a experiência do país na pandemia?
Sim, falei meses atrás, logo no início da pandemia aqui no Brasil, em abril deste ano, com o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, com quem tenho boas relações cultivadas no tempo em que fui prefeito de São Paulo. Eu liguei ao prefeito Sala, dada a circunstância do seu próprio arrependimento do apoio que ele manifestou ao programa "Milano non si ferma" ["Milão não para"].
Um gravíssimo equívoco, defendendo economia e desrespeitando os efeitos da pandemia. E ele me disse isso, aliás com tristeza, mas com muita sinceridade, do equívoco que foi o apoio a essa iniciativa, e a mudança de posição que ele acertadamente teve para proteger os italianos que vivem em Milão e em torno de Milão. Foram experiências do negativo ao positivo que nos ajudaram aqui também a dedicar prioridade absoluta à saúde e à vida.
Uma das estratégias da Itália para conter a pandemia foi um lockdown bastante rigoroso. Hoje o país tem uma média móvel de mortes ao redor de dez por dia, enquanto a de São Paulo ainda é superior a 100. O senhor não acha que um lockdown teria contido a pandemia no estado mais rapidamente?
Não foi recomendado pelo centro de contingência. Aqui não se toma decisão política nem decisão econômica, toma-se decisão de saúde. Eu segui exatamente o que especialistas de saúde determinaram. E é preciso também considerar que não há comparação entre a Itália e o estado de São Paulo. Embora São Paulo seja o estado mais produtivo e rico do Brasil, não tem a mesma riqueza e as mesmas condições que tem a Itália. A Itália tem um PIB superior ao do estado de São Paulo, e o nível de educação e consciência da sua população também é superior ao nível de consciência da população em São Paulo. E também não há os bolsões de pobreza e de miséria que, infelizmente, temos aqui também.
Então quais foram as razões sanitárias para não ter sido decretado um lockdown?
As condições de atendimento nos hospitais públicos. São Paulo tinha, no início da pandemia 3,5 mil leitos de UTI, hoje tem 8,2 mil. Nós, já no início da pandemia, tínhamos mais leitos de UTI que a Itália e do que a própria Espanha, por força de um sistema público de saúde muito robusto. Isso nos ajudou muito. Nós não vivemos aqui o drama que a Itália viveu de escolher entre quem vivia e quem morria. Então nós não tínhamos aqui a necessidade, dada a orientação do setor científico, de estabelecer lockdown.
Essa foi a principal razão. Depois, investimos muito na testagem. São Paulo é a região de toda a América Latina com maior número de testagem para a covid-19, isso nos ajudou muito a ter um controle adequado da evolução do vírus.
Um levantamento feito pelo G1 mostrou um crescimento de 23 vezes na quantidade de mortes por síndrome respiratória aguda grave sem causa especificada em São Paulo até 25 de julho. O governo estadual tem uma estimativa do quanto os óbitos por covid-19 em São Paulo estão subnotificados?
Hoje mesmo tratamos desse assunto com o secretário de Saúde, doutor Jean Gorinchteyn, para que essa verificação seja feita.
São Paulo não esconde os números, São Paulo dá transparência absoluta a todos os seus números, tanto de infectados quanto de óbitos. Ao longo desses seis meses, não houve nenhum caso específico de subnotificação claramente identificada, mas é sempre bom pesquisar e analisar mesmo no tempo passado, e essa foi a nossa orientação.
Quando a vacina da Sinovac começará a ser distribuída para a população? Até o presente momento, não houve nenhum efeito colateral considerado grave ou suspeito que merecesse uma reanálise.
Estamos já com mais de 40 dias de testagem e, se tudo continuar correndo bem, em novembro já teremos completado todo o ciclo e poderemos submeter à aprovação da Anvisa. Correndo bem, em novembro a Anvisa já poderá dar a aprovação da vacina, e em dezembro nós já teremos condições de iniciar a vacinação aqui em São Paulo. Nosso objetivo agora é ter apoio do governo federal para que mais vacinas da Sinovac possam ser importadas, e um novo lote, produzido aqui no Instituto Butantan para contribuir na imunização de brasileiros de outros estados também.
Como o estado está se preparando para a reabertura das escolas programada para outubro. Haverá distribuição de máscaras e álcool gel nos colégios da rede pública, bem como distanciamento entre os alunos?
É exatamente como você colocou. Não há possibilidade de retomarmos as aulas a partir de 7 de outubro sem as medidas preventivas apontadas para alunos, professores e servidores das escolas públicas. A volta só será permitida se as condições sanitárias assim indicarem. Até aqui, estão indicando positivamente. Se criarmos ainda essa condição nas próximas semanas, e com proteção sanitária nas escolas, face shields, máscaras, álcool gel, orientação para a higiene das mãos, distanciamento físico de um metro e meio entre os alunos e ocupação gradual, que envolve 35% do universo de alunos em um dia, 35% no outro dia, 30% em outro dia, tudo correndo bem, as aulas serão retomadas no dia 7 de outubro.
O senhor citou o arrependimento do prefeito de Milão em relação à campanha "Milano non si ferma". Passados seis meses de pandemia, existe algo que o senhor teria feito diferente?
Primeiro, volto a repetir, aqui as decisões não foram pessoais e não foram impulsionadas por decisões econômicas nem por pressões de grupos. A única orientação que seguimos foi a da saúde, então não houve nenhum arrependimento porque tomamos as medidas certas, amparados na ciência, e não em pressões, nem de ordem política, nem de ordem econômica.
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