Bolsas de estudo para ilegais ajudam jovens em 'limbo' nos EUA
Com raízes, mas sem documento
Yelky e Nataly levam uma vida quase normal nos Estados Unidos: são queridas pelas amigas, são ativas na comunidade nova-iorquina onde vivem e vão à universidade.
Mas, para si, Yelky cultiva o sonho de um dia poder tirar a carteira de motorista e dirigir livremente pelas rodovias americanas. Já Nataly se emociona ao contar à BBC Brasil que queria voltar a seu povoado natal, no Equador, para visitar os avós octogenários.
O problema é que, sem os nove dígitos do documento mais importante para os cidadãos americanos - o número do cadastro da Previdência Social -, nenhuma das duas pode realizar seus sonhos por enquanto.
Agora, uma bolsa promete pelo menos aproximar Yelky Ramos, de 20 anos, e Nataly Lopez, de 21 anos, do diploma universitário.
Sem poder se candidatar a nenhum tipo de ajuda financeira para pagar os estudos, ambas foram selecionadas como bolsistas em um programa criado por uma organização pró-imigrantes que faz campanha pela legalização de estudantes na sua mesma situação.
Limbo Yelky e Nataly são um exemplo das centenas de milhares de jovens que entraram ainda crianças e ilegalmente nos Estados Unidos, com seus pais, frequentaram escolas americanas e ingressaram em universidades - mas continuam vivendo em um "limbo legal". Têm raízes no país, mas não um caminho possível para a legalização.
A bolsa, promovida pela Coalizão Nova-Iorquina pela Imigração, ajudará as duas a pagar pela faculdade, mas seu objetivo último é forçar a aprovação de uma lei que está parada há uma década no Congresso americano e que abriria o caminho para legalizar imigrantes como elas.
"É muito difícil tentar pertencer a um grupo que não te quer. Eu me sinto tão americana quanto qualquer outra pessoa. Na escola, jurava a bandeira como todos os demais estudantes", ressente-se Yelky, que veio da República Dominicana com 13 anos de idade.
"Para mim é difícil, porque eu também tenho sonhos: tenho 20 anos, vou terminar a universidade agora em maio, e quero empreender uma vida. Mas não quero uma vida que dependa de um governo, quero uma vida na qual que tenha a liberdade de ser uma pessoa normal: de poder trabalhar, de ter uma família, de fazer o que quiser, de viver sem medo, de dirigir, enfim, de fazer coisas simples, que as pessoas nem notam ou apreciam, mas que são importantes."
Debate migratório
Como todas as questões envolvendo imigração, o projeto chamado Dream Act acende um debate acalorado nos Estados Unidos. Dream, ou sonho, em inglês, é a sigla para Desenvolvimento, Ajuda e Educação para Menores Imigrantes.
Com modificações, o projeto vem sendo introduzido e reintroduzido no Congresso americano desde 2001. A última versão que está em tramitação entrou em maio de 2011.
O projeto de lei oferece um caminho para a legalização a indivíduos com menos de 35 anos que chegaram nos EUA antes de completar 16 anos, viveram mais de cinco anos no país, cursaram escola e passaram pelo menos dois anos na universidade ou nas Forças Armadas.
O críticos alegam que o Dream Act seria uma forma "recompensar" a imigração ilegal.
Um relatório produzido em 2010 pelo Instituto de Política Migratória para embasar as discussões parlamentares estimou que 726 mil estudantes seriam legalizados automaticamente a partir do momento em que a lei entrar em vigor.
Mas como a naturalização não é automática - o período probatório é de seis anos - apenas cerca de 114 mil seriam elegíveis para a residência permanente, calculou o relatório.
Um total de 2,1 milhões de pessoas poderiam se candidatar aos benefícios do Dream Act, mas apenas cerca de 825 mil receberiam a residência permanente através da lei, na visão do Instituto de Política Migratória.
Apesar das nuances do cálculo, os críticos da lei têm repetido o número maior na tentativa de assustar os cidadãos que já temem a pressão dos imigrantes sobre os serviços disponíveis.
"Será que os Estados Unidos querem empurrar 2 milhões de pessoas, a maioria jovens não interessados em educação, para nossas universidades já superlotadas e subfinanciadas, só para que eles peçam um status legal que hoje não têm?", questionou, em um artigo elaborado na época do relatório, o especialista David North, do Centro de Estudos Migratórios.
O Centro calcula que se 1 milhão de estudantes se matricularem nas universidades públicas por causa da lei, eles custarão ao contribuinte US$ 6,2 bilhões (R$ 11,2 bilhões) em subsídios educacionais.
"Será que devemos empurrar pessoas que de outra forma não iriam voluntariamente para a universidade só porque elas querem se legalizar, e não aprender?", argumentou North.
Esperança
Nataly e Yelky não se descrevem como pessoas que não querem aprender. Yelky estuda Relações Públicas, tem qualificação em jornalismo, e está se candidatando a uma faculdade de Direito. "Quero advogar pelo interesse público", afirma.
Nataly, que chegou nos EUA com quatro anos de idade, diz ter aprendido que "a pessoa que vive com medo (de ser deportada) se limita".
As duas estão entre os dez alunos universitários selecionados pela Coalização Nova-Iorquina pela Imigração para receber US$ 2 mil que serão repassados diretamente às suas universidades, para ajudar a pagar os seus estudos.
Os recursos, privados, pagam um semestre, mas a ideia é que, se der certo, a iniciativa continue ajudando estudantes na situação de "limbo" - incluindo os mais de cem que se candidataram para a primeira versão da bolsa.
O objetivo do subsídio é pressionar os legislativos estaduais para que passem versões locais do Dream Act. Mesmo sem oferecer a legalização do status migratório dos estudantes, os Estados podem permitir aos beneficiários da lei que acessem recursos financeiros para ajudar a pagar a universidade.
Legislações estaduais nessa linha já existem no Texas, no Novo México e na Califórnia - o Estado mais recente a aprovar a lei. O Legislativo de Maryland também aprovou seu Dream Act, que será submetido a um referendo popular em outubro. Os ativistas estão pressionando por algo semelhante em Nova York.
Mas sem um Dream Act nacional, a vida das estudantes, embora mais fácil, continuará no limbo.
"Muitas vezes eu choro, porque não sei o que vai acontecer. Há muitas guerras internas na política dos EUA e eu não sei o que vai ser da minha vida e da vida de muitas pessoas que estão na minha mesma situação", diz Yelky.
"Os anos passam, a vida passa, e isso é a única coisa que não pode voltar. Sinto que estamos perdendo muito tempo esperando que algo aconteça."
Nataly, que por falta de dinheiro vinha cursando apenas uma ou duas cadeiras por semestre na faculdade de Psicologia da Linguagem, e agora poderá adiantar o curso, procura demonstrar mais otimismo.
"Eu e minha família estamos bem. Não é a situação ideal, mas estamos trabalhando. Eu estou na universidade e minha irmã, de 13 anos, está indo à escola", pondera.
Mas ela não esconde a pena de não poder voltar ao pequeno povoado de Sigsig, perto de Cuenca, nos Andes equatorianos, para rever seus avós que ainda vivem lá.
"Quando vim para cá, Sigsig era um povoado minúsculo, mas agora, pelo que vejo em fotos e pelo que minha família me conta, virou uma cidade grande e moderna, tudo mudou", diz Nataly.
"Meu maior medo é passar todo meu tempo aqui nos Estados Unidos e, quando voltar a Sigsig, já não poder mais ver meus avós. Eles já têm mais de 80 anos. Não viverão para sempre."
Depoimento: Nataly Lopez, 21 anos, do Equador
"Tenho 21 anos, quase 22. Nasci em Sigsig, um povoado perto de Cuenca. Cheguei nos EUA com quatro anos de idade, em novembro de 1994. Estou cursando a universidade desde 2008 - estaria no último ano se fosse cidadã.
Até a escola secundária, o fato de não ter documentos não significava nada para mim. Mas na universidade pedem os papéis e, se você quiser ajuda financeira, precisa do cadastro no sistema de seguridade. Eu nunca tive ninguém que me ajudasse a pagar a universidade, por isso por muito tempo estive cursando apenas uma ou duas cadeiras por semestre.
Uma pessoa viu a bolsa da Coalizão Nova-Iorquina pela Imigração e me passou o link. Como eu tinha feito vários trabalhos voluntários, estágios e inclusive em um grupo de ativismo latino, o Latino Youth for Higher Education Programme, me deram a bolsa.
A pessoa que vive com medo se limita. Antes, eu fazia isso e me limitava, porque não tinha meus documentos. Um dia pensei: 'Sabe de uma coisa, talvez me candidate para uma bolsa'.
Estamos bem. Não estamos em uma situação ideal, mas estamos trabalhando. Minha irmã, de 13 anos, está indo à escola."
Depoimento: Yelky Ramos, 20 anos, da República Dominicana
"Vim para os EUA quando tinha 13 anos - agora tenho 20. Quando saí da República Dominicana, já estava na idade de ir para a escola secundária e por isso sempre foi muito difícil para mim me integrar, aprender inglês, fazer outras amizades, aprender um sistema novo, etc.
Não lembro e sequer mantenho contato com as pessoas da minha escola. Se voltasse, teria que começar de novo, praticamente. Teria que fazer amizades novas, adaptar-me de novo ao sistema de lá. Eu era pequena, aos 13 anos ninguém pode tomar decisões por conta própria.
Apesar das dificuldades, consegui terminar a escola secundária em primeiro (lugar) da turma. Mas os problemas começaram logo depois, na faculdade - os tais "nove dígitos (do cadastro de seguridade social)" que eu não tinha.
Sem dinheiro para cursar a universidade, eu não podia me candidatar a nenhuma bolsa nem a qualquer outro recurso financeiro para ajudar a pagar os estudos.
Graças a uma pessoa que se ofereceu para doar dinheiro para minha matrícula, pude começar a universidade. E fui me candidatando a bolsas pequenas para cobrir a mensalidade, um pouquinho aqui, um pouquinho ali, sem ter que parar.
Na universidade, virei uma ativista para ajudar as pessoas que estão na mesma situação. Ninguém ao meu redor soube que eu não tinha documentos, porque eu sempre procurei esses pequenos recursos, que são muito limitados, mas existem aqui e ali. Na Universidade, comecei a botar as fichas na mesa e falar sobre minha situação.
Há pessoas que não têm nenhum problema com o fato de eu ser não ter documentos. Falo inglês mais do que espanhol. Me sinto muito americana e bem-vinda, até que encontro essa barreira que me impede de continuar, porque não tenho os documentos necessários.
Meus pais vieram sem documentos porque buscavam uma melhor economia neste país, mas nunca conseguiram legalizar sua situação, e agora, aposentados, vão voltar para Santo Domingo.
Agora estou por conta própria: tenho de pensar no que vou fazer no futuro. Por isso precisamos que algo aconteça urgentemente, seja em nível nacional, seja em nível estadual. Se não houver o Dream Act, não se cumprem não só os meus sonhos, mas o de muitos outros jovens na mesma situação. Não se trata apenas de ser legal ou ilegal, é a vida das pessoas que está em jogo.
Aqui em Nova York não há tanto perigo de deportação. Eu nunca fui presa, não me meto em confusão e não dirijo, porque não tenho carteira de motorista. Não faço nada que pudesse levar a uma prisão. Então não tenho medo de sair na rua. Se estivesse em outro Estado, como Alabama ou Arizona, teria muito medo. Mas aqui, graças a Deus, não há tanto.
O dia a dia é um pouco normal, mas ao mesmo tempo há muitas frustrações. Por exemplo, eu gostaria de dirigir, mas não posso. Queria poder ir para um evento na ONU e preciso levar meu passaporte, porque não tenho outra identidade. E claro, viajar. Desde que cheguei, nunca fui à República Dominicana.
Antes, quando ninguém sabia que eu era "sem documentos", as pessoas me diziam, ah, este verão vamos à República Dominicana - pessoas que nem sequer são dominicanas! E eu procurava muitíssimas desculpas para justificar que não podia viajar. Me dava tristeza.
Mas encontrei coragem para dizer o que sou e não tenho medo."
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