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2016 foi realmente um ano difícil para a democracia?

28/12/2016 10h29

Se 2016 vai ser lembrado por alguma coisa no futuro é porque, em vários países ocidentais, eleitores infelizes ou esquecidos pelo "establishment" viraram o tabuleiro político de cabeça para baixo.

Foi um ano que surpreendeu muita gente, mas não esses eleitores, que se sentiram vingados em processos democráticos como eleições e plebiscitos, nos quais antes não estavam interessados.

Essa virada teve ainda uma particularidade ideológica: "O descontentamento e incerteza de um setor da população foi explorado pela direita", disse à BBC Mundo - o serviço em espanhol da BBC - David Held, professor de Política e Relações Internacionais da Universidade de Durham, no Reino Unido.

Líderes atípicos, que antes tinham sido considerados "politicamente incorretos", como Donald Trump nos EUA, Nigel Farage no Reino Unido e Beppe Grillo na Itália, transformaram-se em vozes triunfantes desse eleitorado.

"Claramente, estamos no início de uma nova era", diz Held, autor de numerosos artigos e livros sobre democracia e globalização.

"É uma época marcada pelo triunfo do medo e da raiva, por um flagrante desrespeito à verdade, pela xenofobia, o enfraquecimento das ideias liberais e a rejeição das conquistas da globalização econômica."

Tudo isso fez com que 2016 deixe uma série de perguntas fundamentais e desconfortáveis: a democracia tal como nós a conhecemos está em crise?

"O pior ano"

"A democracia teve uma década ruim", disse o professor Brian Klaas, especialista em Políticas Comparadas e Democracia Global na London School of Economics, no Reino Unido.

Segundo ele, desde 2006 vários indicadores mostram que, ano após ano, o mundo tornou-se menos democrático; regimes autoritários se espalharam e deixaram raízes em lugares considerados democráticos, como nas Filipinas, com o presidente Rodrigo Duterte, que recentemente se comparou a Adolf Hitler.

E sobre este ano Klaas concluiu sem hesitação: "Na última década, 2016 foi claramente o pior ano para a democracia no mundo".

"E não apenas em termos de resultados individuais das eleições e plebiscitos, mas também porque um número crescente de pessoas está questionando a democracia como a forma ideal de governo."

O choque do Brexit

O primeiro grande feito global que confundiu muitos em 2016 foi o plebiscito sobre a União Europeia no Reino Unido em 23 de junho.

Ao contrário do que os analistas e pesquisas tinham previsto, a maioria dos britânicos votou por deixar o bloco comum.

Existe consenso entre os analistas de que a vitória do "Não" ocorreu porque, mais do que de um plebiscito sobre a UE, foi uma consulta sobre imigração, sobre os medos das pessoas ante o futuro e sobre a utopia de que o Reino Unido pode ser mais próspero de forma independente.

"A coisa incrível do plebiscito no Reino Unido é que muitos não responderam à pergunta", diz David Held, da Universidade de Durham.

"O que destaca o problema fundamental de tais consultas: elas não são adequadas para definir problemas complexos cruciais para o destino de um país."

Klaas concorda e acrescenta: "A simples pergunta do referendo, sobre permanecer ou sair da UE, envolvia uma série de questões complexas e inter-relacionadas, e dificilmente poderia decidir-se sobre eles com as informações disponíveis naquele momento e em um período tão limitado".

Ambos os estudiosos chamam a atenção para o fato de que muitos eleitores decidiram votar com base em uma mentira: a promessa de campanha do "Não" (reconhecida a posteriori como falsa pelos seus promotores) de que, com sua vitória, US$ 430 milhões extras seriam injetados no serviço nacional de saúde.

Avanço da extrema-direita na Europa

Mas o Brexit foi apenas um dos contornos de um processo mais amplo que marcou a Europa em 2016: o avanço da extrema-direta em diversos países.

A Espanha passou por grandes obstáculos para formar um novo governo. Na Itália, veio a derrota humilhante (e a renúncia) do primeiro-ministro Matteo Renzi, em um plebiscito para reformar o sistema político.

Da mesma forma que no Reino Unido, a direita italiana, liderada por Beppe Grillo, saiu fortalecida usando um discurso contra o sistema e de rejeição à União Europeia e suas "imposições" econômicas e políticas.

Na França e na Alemanha, os movimentos de extrema-direita populista de Marine Le Pen e da Alternativa para a Alemanha (AFD), respectivamente, ampliaram sua base de apoio, também com um programa anti-establishment e a rejeição a estrangeiros. Os dois grupos devem se consolidar nas eleições do próximo ano.

Na Áustria, o candidato presidencial da mesma tendência política, Norbert Hofer, perdeu por pouco, mas deixou claro que representa uma força crescente.

A carta vencedora de Trump

No entanto, talvez o mais marcante do ano foi o que aconteceu nos EUA, a mais poderosa democracia do mundo.

O magnata Donald Trump não só impressionou ao vencer a primária republicana, mas também ao alcançar uma vitória confortável na eleição presidencial de 8 de novembro.

E o fez protagonizando uma campanha que anos antes não teria ido longe.

Sob o lema Make America Great Again, algo como "Tornar a América grande de novo", atacou frontalmente o establishment de Washington, a quem acusou de corrupto e distante das necessidades do eleitorado.

Ele apresentou os imigrantes como criminosos (disse que a maioria dos mexicanos que cruzam a fronteira "são estupradores") e como uma ameaça à segurança do país, e prometeu construir um muro entre os EUA e o México.

Trump descreveu a mudança climática como uma farsa promovida pela China e prometeu cancelar grandes tratados comerciais entre seu país e outras regiões do mundo, favorecendo o protecionismo.

Enquanto isso, elogiava um líder cada vez mais marcada pelo autoritarismo, o presidente russo, Vladimir Putin.

Tudo isso em meio a alegações de assédio sexual que ele negou, comentários misóginos, insultos diretos à sua rival democrata Hillary Clinton e resistência para divulgar sua polêmica declaração de impostos.

Além disso, houve as constantes idas e vindas de seus discursos.

"O caso de Trump significou a consolidação de uma nova tendência na política", diz o acadêmico britânico David Held. "Ele mostrou que você pode dizer qualquer coisa em público sem sofrer consequências."

Mas não é só isso: em sua subida rumo à vitória a internet esteve no centro da cena. Houve alegações - rechaçadas pela campanha do republicano- de que notícias falsas disseminadas pelo Facebook contribuíram para o seu sucesso e que os hackers russos realizaram ataques cibernéticos nos Estados Unidos com o mesmo fim.

Razões históricas

Segundo os analistas ouvidos pela BBC, as razões para o sucesso de Trump e do Brexit, para citar os casos mais importantes do ano, são mais profundas e abrangentes do que se poderia imaginar.

Para começar, "a crise financeira de 2008 teve um impacto negativo sobre os pobres e as classes trabalhadoras, que pagaram o preço da derrocada", diz Held.

Além disso, a globalização enriqueceu as cidades, mas as grandes zonas desindustrializadas e rurais foram deixadas de fora.

"O sistema global em que temos vivido nos últimos 30 a 40 anos tem produzido desigualdade social e desemprego", afirma o historiador italiano Federico Romero, do Instituto Universitário Europeu (EUI, na sigla em inglês).

"E em muitos países ocidentais, está corroído, em alguns setores da população, o sentimento de identificação com a ordem democrática."

A essa equação é adicionada a instabilidade no Oriente Médio, que "tem impulsionado a migração e alimentado os fantasmas de terrorismo na Europa e nos Estados Unidos", de acordo com Held.

O cientista político britânico acrescenta: "Outro fator igualmente importante é o surgimento de sociedades em rede, onde a internet tem dado voz à dissidência, mas também tem criado círculos diferentes de informação em que o conteúdo é adaptado a determinadas ideologias, o que contribui para reduzir a visão pessoal do mundo."

Democracia em crise?

Em vista de tudo o que aconteceu na arena política, as grandes perguntas que 2016 deixa são se a democracia está em crise no Ocidente e, em caso afirmativo, o que exatamente está errado.

Quanto à primeira questão, os analistas consultados não concordam se é o próprio conceito de democracia que está com problemas.

Brian Klaas, da London Schoolf Economics, diz que sim: "As pesquisas encontraram provas claras de que houve uma erosão na ideia de democracia nas sociedades ocidentais".

Federico Romero, do EUI, acha que não: "O princípio democrático está enraizado em muitas sociedades e não há ninguém que o está questionando abertamente. O que observamos são tendências mais autoritárias dentro desse sistema de governo."

Todos os entrevistados concordam, no entanto, que a democracia não está funcionando corretamente.

"No Ocidente, o sistema democrático não está dando resultados a muita gente; não consegue resolver suas maiores preocupações", diz Klaas.

Ao que David Held, da Universidade de Durham, acrescenta: "Que tenhamos eleições e plebiscitos não significa que a democracia esteja resolvendo os problemas dos cidadãos. É a qualidade da democracia que está em jogo".

Mas por que falha agora um sistema político criado na Grécia antiga? Quais engrenagens pararam de funcionar?

O que vai mal

Acadêmicos consultados pela BBC disseram que há três mecanismos importantes que não estão funcionando bem nas democracias ocidentais.

Em primeiro lugar, a desconexão dos partidos políticos tradicionais com o eleitorado.

De acordo com Held, esses grupos "têm cortado seus laços com os eleitores pela incapacidade de mudar suas vidas e perderam força frente as organizações sociais e o poder das redes sociais."

"Eles são dinossauros da política, não têm a vitalidade necessária para mobilizar uma grande quantidade de votos."

De acordo com especialistas, o eleitorado não tende a seguir partidos institucionalizados, mas opta por uma alternativa mais direta: votar em quem vai fornecer o que você precisa sem importar muito a identificação política.

O que nos leva ao segundo elemento que está errado, segundo os analistas: as democracias cada vez mais têm dificuldade de construir maiorias.

"Em muitas sociedades ocidentais, há uma crescente polarização na política. Nelas, ceder virou uma palavra ruim e consenso, uma memória distante", diz Brian Klass, da London School of Economics.

Como resultado, Klaas continua, as decisões democráticas parecem repousar sobre um grande número de "eleitores flutuantes" que podem decidir uma votação apertada em qualquer direção.

"Na verdade, as grandes escolhas de 2016 foram resolvidas por uma margem estreita", diz.

Claro que isto é um perigo, adverte Federico Romero, do EUI. "(Há) o risco de que a democracia se reduza ao domínio de uma maioria que não respeita as minorias, e torne-se mais autoritária e menos plural."

Mentiras verdadeiras

Em tal cenário, a informação - o terceiro elemento disfuncional, de acordo com os especialistas consultados - desempenha um papel crucial.

"Para funcionar adequadamente, a democracia requer o consentimento informado dos governados", diz Klaas.

"Hoje temos um monte de meios para escolher, mas as pessoas tendem a fechar-se em recintos ideológicos aos quais são afins, nos quais ouvem seu próprio eco."

De acordo com Klaas, a isso se soma o fato de que as redes sociais facilitam a difusão de notícias falsas: "a democracia sofre ainda mais", acrescenta.

"Os governos enfrentam o problema de que os cidadãos não conseguem distinguir entre fatos reais e fabricados. E em uma democracia assim, os resultados da votação podem tornar-se imprevisíveis, como aconteceu, em parte, com Trump e Brexit".

E o futuro?

Dadas as dificuldades que enfrentam as democracias ocidentais hoje, os três pesquisadores ouvidos concordam que esta antiga forma de governo deve ser reintroduzida.

"A democracia deve ser defendida vigorosamente como um princípio fundamental e, acima de tudo, repensada em muitos aspectos", diz Federico Romero, do EUI.

De acordo com Romero, para sobreviver e prosperar novamente ela deve voltar a ser capaz de resolver mais eficazmente problemas como a pobreza, a desigualdade e o desemprego.

Professor David Held, da Universidade de Durham, concorda. Em sua opinião, o principal desafio para as democracias ocidentais é "alcançar resultados concretos para os setores alienados em um mundo globalizado, onde multinacionais, lobbies e a internet têm cada vez mais poder."

Para Held, seria "estúpido" não ouvir aqueles que em 2016 votaram a favor do Brexit e de Donald Trump.

"Sua aparição na cena política é uma lição a ser aprendida em vista das eleições de 2017 e dos anos seguintes."