"Nós fingimos ser muçulmanos para sobreviver": os meninos yazidis obrigados a lutar pelo Estado Islâmico
Essa é uma história de medo, violência e morte, envolvendo o grupo extremista autodenominado "Estado Islâmico" (EI) na Síria e dois garotos forçados a seguir o islã e a matar quem se opõe aos radicais muçulmanos.
"Nos levavam a umas fossas grandes, onde havia corpos de traidores muçulmanos que eram espiões ou usavam drogas. Nos diziam que tínhamos que atirar nos cadáveres para nos acostumar", relata Sabbah.
"Sabia que matavam todo mundo que não fosse muçulmano. Assim, fingi ser muçulmano para sobreviver", emenda Lovant.
Sabbah e Lovant são nomes fictícios, usados para proteger a identidade de dois adolescentes da etnia yazidi do norte do Iraque.
Em agosto de 2014, o EI atacou milhares de yazidis em Sinjar, região do norte do Iraque próxima a uma montanha de mesmo nome, deixando-os sem água e comida num calor insuportável.
A maior parte dos homens adultos foi assassinada. Os mais jovens, por sua vez, foram levados a uma cidade vizinha onde foram separados de suas famílias.
Sabbah e Lovant tinham 14 e 16 anos quando foram sequestrados e treinados para serem "lobinhos do califado", como são conhecidos os recrutas novatos do EI que atuam nas montanhas remotas da Síria.
Os dois narraram a própria história à BBC num centro de refugiados yazidis na Alemanha, onde estão abrigados desde que conseguiram fugir do acampamento jihadista.
"Lavagem cerebral"
Ninguém sabe quantos yazidis foram treinados nesses acampamentos do EI, mas um informe compilado pela Fundação Quilliam, que combate o extremismo, afirma que há centenas de jovens nessa situação, incluindo meninos de 8 anos de idade.
Sabbah e Lovant asseguram que eram parte de um grupo de cerca de 120 crianças. A maioria era da Síria e quase todos muçulmanos, segundo eles.
Diferente do que aconteceu com Sabbah, Lovant e os outros yazidis, muitos dos jovens recrutas foram enviados pelas próprias famílias para serem treinados e fazerem parte da próxima geração de combatentes jihadistas.
Os dias dos recrutas do EI tinham atividades do começo ao fim. Pelas manhãs, recebiam lições religiosas e doutrinamento. Eram forçados a rezar, ler o Corão e a memorizar os textos do EI que eram cobrados em provas de conhecimento.
"Me fizeram uma lavagem cerebral. Os livros eram como magia. Trocam seu pensamento rapidamente, não só o meu, até a mente de um homem mudou", disse Sabbah.
O adolescente confessou que, depois de um ano nas mãos do grupo extremista, quase acreditou na ideologia radical defendida pelo EI. "Se eu tivesse ficado ali mais um mês, teria me convertido em um deles".
Os yazidis praticam uma religião de mais de 4 mil anos, que reúne elementos do zoroastrismo, judaísmo, cristianismo e islã. O EI os considera devotos do diabo.
Por isso, Sabbah e Lovant preferiram fingir ser muçulmanos para não serem mortos.
Treinamento rigoroso
Além do doutrinamento, tinham treinamento físico, realizados nos meses de calor intenso do verão. "O chão era muito quente e nos ensinavam a caminhar sobre ele para nos acostumarmos com isso nos preparando para a guerra", explicou Sabbah.
Também descreveu a cultura do medo, que dominava o acampamento. Os jovens recrutas eram forçados a atuarem como guardas noturnos. Os sequestradores puniam os que dormiam jogando neles água fria ou distribuindo golpes com um bastão de madeira.
A arma precisava ficar no ombro durante todo o tempo, até mesmo quando iam ao banheiro. Esquecê-la ou deixá-la cair era motivo para apanhar.
Os treinamentos de tiros, por sua vez, eram praticados contra cadáveres de homens executados por serem supostos traidores do EI.
Os recrutas eram forçados também a assistir vídeos sobre a guerra, com cenas explícitas de violência.
"Não nos atrevíamos a negar. Tínhamos muito medo", disse Sabbah, que diz sentir muita falta de casa. Ele emenda que a saudade apertava toda vez que via os garotos sírios indo para passar os finais de semana com a família. "Ficávamos muito chateados. Em momentos como esses, morríamos dez vezes".
A fuga
Lovant conta que, no início, Sabbah não queria escapar do acampamento mas conseguiu convencer o amigo que era um risco que deveriam correr.
"Sabia que era perigoso, mas não havia nada o que temer", avaliou Lovant. "Tínhamos visto a morte com nossos próprios olhos. Vimos como matavam. Quando você perde sua família, quando perde tudo já não tem nada. Não tínhamos nada a perder".
A BBC não pode revelar os detalhes da fuga por uma questão de segurança. Em resumo, Lovan conseguiu secretamente entrar em contato com uma terceira pessoa que, por sua vez, coordenou com um traficante de pessoas o resgate dos dois garotos num lugar específico.
Esse traficante levou Lovant e Sabbah de carro para a cidade de Raqqa, onde eles ficaram uns dias antes de dar início a um tenso trajeto até a fronteira.
Sabbah recorda o momento em que os dois abandonaram o território sírio e entraram no Iraque. "Dançamos na rua para comemorar. Fico feliz que meu amigo me convenceu a fugir, agora ele é como um irmão para mim", diz Sabbah.
O pesadelo yazidi
O relato dos dois garotos coincide com um vídeo publicado recentemente pelo EI, no qual duas crianças da etinia yazidi realizam um ataque suicida contra as forças iraquianas em Mosul.
Um informe diz que os garotos do vídeo têm 11 e 12 anos e foram capturados em Sinjar em 2014. As imagens mostram esses dois soldados falando que abandonaram a antiga religião. "Em Sinjar, adorávamos o satanás", dizem os meninos.
Antes do ataque, o vídeo mostra os dois jurando lealdade ao EI. Em seguida, eles entram em veículos carregados de explosivos.
Atualmente, Sabbah e Lovant estão refugiados em Baden-Württemberg, na Alemanha, longe do perigo de serem capturados novamente. Eles estão num albergue que abriga 80 yazidis.
Muitos dos que estão na Alemanha são mulheres e crianças que não sabem o destino de seus maridos e pais. Enquanto os meninos foram forçados a lutar pelo EI, as mulheres foram transformadas em escravas sexuais.
Apesar de se sentirem mais seguros, os que estão no albergue na Alemanha vivem atormentados pela incerteza sobre o destino de cerca de 3,5 mil mulheres e crianças yazidis que estariam sob o domínio do Estado Islâmico.
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