O traficante de órgãos que se aproveita do desespero de refugiados no Líbano
Abu Jaafar* explica o que chama de trabalho com certo orgulho.
Ex-segurança de bar, ele mudou de ofício ao conhecer um grupo de traficantes de órgãos. Hoje vive de encontrar pessoas desesperadas o suficiente para doá-los em troca de dinheiro.
Trata-se de um mercado que cresceu em oportunidades graças ao imenso fluxo de refugiados sírios cruzando a fronteira com o Líbano - estima-se que mais de um milhão deles vivam no país atualmente.
"Eu exploro as pessoas, mas elas também se beneficiam", diz Jaafar, argumentando que muitos refugiados poderiam ter morrido na guerra civil síria e que, para muitos, doar um órgão não é nada perto dos horrores por que passaram.
O escritório de Jaafar é um pequeno bar em um prédio caindo aos pedaços, em um subúrbio do sul de Beirute.
Nos fundos do bar há um quarto, separado por uma divisória, e entulhado com móveis velhos, além de periquitos em gaiolas. É de lá que Jaafar, segundo ele próprio, organizou a venda de órgãos de ao menos 30 refugiados nos últimos três anos.
"Eles (traficantes de órgãos) normalmente querem rins, mas eu posso ajudar a encontrar outros órgãos", afirma. Uma vez pediram um olho e consegui um interessado."
"Tirei uma foto do olho e mandei para eles via Whatsapp. E depois enviei-lhes o cliente."
As estreitas ruas em que Jaafar opera estão cheias de refugiados, que já correspondem a quase 25% da população libanesa. Muitos não têm visto de trabalho, e as famílias mal conseguem se alimentar.
Os mais desesperados são palestinos que já eram considerados refugiados na Síria e, por isso, não podem ser registrados novamente pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) quando chegam ao Líbano. Vivem em campos superlotados e recebem pouca ajuda.
Em condição crítica de vulnerabilidade também estão refugiados chegaram da Síria depois de maio de 2015, quando o governo do Líbano pediu à ONU que interrompesse o registro de novas chegadas.
"Aqueles que não têm registro estão sofrendo", diz Jafaar. "O que podem fazer? Estão desesperados e não têm outra maneira de sobreviver, a não ser que vendam seus órgãos", tenta justificar o traficante.
Muitos refugiados mendigam nas ruas, em especial crianças. Garotos engraxam sapatos e perambulam em engarrafamentos tentando vender chicletes ou lenços de papel. A exploração do trabalho infantil - e a prostituição - são comuns.
Modus operandi
Vender um órgão é um meio de ganhar dinheiro rápido.
Quando Jaafar encontra um candidato, ele o conduz, vendado, a uma locação secreta. Médicos operam o paciente, usando casas alugadas e transformadas em clínicas temporárias. Os doadores fazem exames básicos de sangue antes das cirurgias.
"Depois da operação, eu ainda cuido deles por quase uma semana, até que retirem os pontos. Depois, não me importa o que acontece com eles", diz Jaafar.
O ex-segurança que se tornou traficante de órgãos também demonstra frieza ao comentar a possibilidade de morte das pessoas que explora.
"Eu não realmente não me importo se um cliente morre, pois consegui o que queria. Não é meu problema o que acontece depois, desde que o cliente seja pago."
Um cliente recente de Jaafar foi um adolescente de 17 anos que deixara a Síria após seu pai e irmãos morrerem na guerra. Depois de três anos no Líbano em empregos informais para sustentar a mãe e cinco irmãs, ele vendeu o rim direito pelo equivalente a R$ 24 mil.
Dois dias depois, visivelmente com dores apesar de estar tomando remédios, o jovem alternava-se entre deitar e sentar em um sofá surrado, buscando algum conforto.
O suor tomava seu rosto e suas bandagens estavam ensanguentadas.
Jaafar não quis dizer quanto recebeu de comissão neste caso. Afirmou também não saber o destino dos órgãos após as remoções - disse acreditar que sejam exportados.
Nos países do Oriente Médio há uma escassez de órgãos para transplante, por objeções culturais e religiosas à doação. A maioria das famílias opta por enterros imediatos.
Jaafar diz que há pelo menos outros sete traficantes como ele operando no Líbano.
"Os negócios estão prosperando. E explodiram depois da migração síria para o Líbano", afirma.
Ousadia e respeito
Ele diz saber que age de forma ilegal, mas não teme as autoridades - seu número de telefone está pichado em muros e paredes próximos a sua casa.
Em sua vizinhança. Jafaar é respeitado e temido. Enquanto caminha, pessoas param para brincar e conversar com ele, que anda armado.
"O que faço é ilegal, mas estou ajudando as pessoas. É assim que vejo as coisas. O cliente está usando o dinheiro para buscar uma vida melhor para ele e sua família", explica.
"(Quem vende seus órgãos) Pode comprar um carro e trabalhar como motorista de táxi, ou mesmo viajar para outro país. Estou ajudando essas pessoas. Não me importo com a lei."
Para Jaafar, as autoridades são o problema, ja que a lei impede muitos refugiados de trabalhar ou obter ajuda.
"Não estou forçando ninguém a fazer a cirurgia. Apenas atuo como intermediário."
Enquanto acende um cigarro, Jaafar me pergunta:
"Quanto você quer por seu olho?"
*Abu Jaafar não é o nome real do intermediário - ele aceitou falar com a BBC apenas sob a condição de anonimato.
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