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O clã escocês 'perdido' em uma vila no norte da Itália

Bebê de Gurro com roupa típica escocesa; cidade se orgulha de seu laço com a Escócia - Katia Bernardi
Bebê de Gurro com roupa típica escocesa; cidade se orgulha de seu laço com a Escócia Imagem: Katia Bernardi

Dany Mitzman

De Gurro (Itália) para a BBC

19/08/2017 10h23

Milhares de italianos emigraram à Escócia no século 20, mas aparentemente, 400 anos antes, um grupo de escoceses teria fincado raízes em uma aldeia nos Alpes italianos - pelo menos é isso o que diz a lenda. E há sinais que sugerem que a história possa ser verdade.

No alto das montanhas dos Alpes do norte italiano, a poucos quilômetros da fronteira com a Suíça, a população da pequena vila de Gurro fala um estranho dialeto incompreensível até mesmo para moradores de aldeias no mesmo vale.

Eles têm sobrenomes peculiares, e a vestimenta tradicional das mulheres é de estampa quadriculada semelhante à dos escoceses.

Uma explicação para isso são justamente as possíveis raízes escocesas dessa população: entre os antepassados da população de Gurro estaria um batalhão de soldados escoceses - a Garde Ecossaise - que serviram ao rei francês Francisco 1º e que foram derrotados com o monarca na Batalha de Piva, perto de Milão, em 1525.

Soldados escoceses teriam fincado raízes em Gurro após ficarem retidos no inverno - Katia Bernardi - Katia Bernardi
Soldados escoceses teriam fincado raízes em Gurro após ficarem retidos no inverno
Imagem: Katia Bernardi

Diz a lenda que, ao tentar retornar à Escócia, os soldados ficaram retidos pela neve invernal em Gurro. E acabaram ficando por ali, acreditam muitos moradores locais atuais.

"Escuto essa história desde que era criança", diz Alma Dresti, nascida e criada em Gurro. "Sei que ao menos parte dela é lenda, mas gosto de acreditar nela e acho que há algo de verdade. Gosto de imaginar aqueles jovens soldados tentando voltar para casa, parando aqui e gostando tanto que ficaram até mesmo depois da chegada da primavera."

Uma das lendas descreve como os escoceses raptaram mulheres de uma aldeia próxima e celebraram isso com grandes festas - e até mesmo acordaram o padre local em plena madrugada para forçá-lo a validar as uniões.

Alma diz que essa história pode explicar um peculiar costume de Gurro, de fazer as festas antes do casamento em si - e de realizar as cerimônias logo cedo pela manhã.

"A tradição de fazer um almoço de casamento uma semana antes da cerimônia prosseguiu até os anos 1950", explica ela. "Meus pais, que casaram em janeiro de 1951, fizeram isso: uma grande festa com todos os parentes uma semana antes, daí voltaram para casa e, na semana seguinte, se casaram na igreja às 6h da manhã."

Hoje com 95 anos, a mãe de Alma costumava andar vestida com as roupas tradicionais, incluindo a saia de padrão escocês.

Alguns moradores locais têm o sobrenome Patritti, que acredita-se ser derivado do britânico Patrick.

Caminhando pelas ruas de paralelepípedo, a filha mais nova de Alma, Sabrina, mostra à reportagem um incomum detalhe arquitetônico: algumas construções têm suportes de madeira sob as janelas, formando o que parece ser a Cruz de St. Andrews presente na bandeira da Escócia.

Detalhes arquitetônicos parecem fazer referência à bandeira da Escócia - Katia Bernardi - Katia Bernardi
Detalhes arquitetônicos parecem fazer referência à bandeira da Escócia
Imagem: Katia Bernardi

Algumas palavras do dialeto, que parecem ter origem celta, também são possíveis indicativos das raízes escocesas locais.

"Especialmente na forma como dizemos o 'sim'", explica Alma. "O 'si' italiano, em outros dialetos muda um pouco, parecido com 'shi'. Aqui é 'aye' (semelhante ao "sim" escocês)."

Há diversos outros fragmentos de indícios que podem ser listados pela população. Uma canção local típica fala da nostalgia pelo mar, ainda que, 500 anos atrás, a população de Gurro dificilmente veria o mar. E há também um nó de pescador que parece ter sido ensinado por pescadores para os homens das montanhas de Gurro.

Morador de Gurro com traje típico escocês - Katia Bernardi  - Katia Bernardi
Morador de Gurro com traje típico escocês
Imagem: Katia Bernardi

Tudo isso impressionou tanto o barão e coronel britânico Gayre, um antropólogo amador, que ele decidiu investigar o caso.

Seu livro, The Lost Clan (O clã perdido, em tradução livre), concluiu que a população de Gurro provavelmente poderia reivindicar sua ascendência escocesa. E, em 1973, ele simbolicamente os incorporou a seu próprio clã.

Silvano Dresti (sem parentesco com Alma; é um nome comum em Gurro) relembra da festa de arromba que foi dada para celebrar isso. "Havia muita empolgação e a aldeia inteira foi decorada com bandeiras escocesas e italianas para a ocasião. A filiação ao clã nos deixou orgulhosos", diz ele, que tinha 18 anos na época.

Entre os convidados VIP da festa estava Oscar Luigi Scalfaro, que mais tarde se tornaria presidente da Itália. Até a BBC Escócia cobriu o evento. E a cerimônia é até hoje lembrada com carinho na cidade.

"Foi uma emoção tão grande assistir à procissão", diz Alma, que tinha 21 anos na época.

Depois da festança, Silvano Dresti começou a aprender a tocar a gaita de fole, ainda que faça questão de destacar que tem mais desenvoltura na variante italiana, chamada baghet bergamasco.

Seu irmão, Giorgio, certa vez apareceu no castelo da família Gayre na Escócia. "Quando ele disse que era de Gurro, eles (parentes de Gayre) lhe deram as boas-vindas", conta Silvano.

Silvano Dresti aprendeu a tocar a gaita de fole para celebrar suas raízes - Katia Bernardi - Katia Bernardi
Silvano Dresti aprendeu a tocar a gaita de fole para celebrar suas raízes
Imagem: Katia Bernardi

Silvano não visitou o castelo, mas chegou a visitar a Escócia, viagem que considera inesquecível. Seus olhos ficam marejados quando se lembra do momento em que desceu do ônibus turístico antes de cruzar a fronteira da Inglaterra. "O guia nos explicou, 'é ali que começa a Escócia'. Foi quando eu senti emoções dentro de mim que sequer consigo explicar... Escócia... Lembro de pensar: 'É desta terra que dizem que nós viemos'."

E mais uma conexão escocesa se formou quando Sabrina Dresti, filha de Alma, visitou o norte da Escócia e se apaixonou pelo escocês Sam MacDuff.

Será que ele está convencido dos laços entre Gurro e a Escócia?

"Bem, a princípio pensei que fosse uma piada", diz Sam. "Mas quando li a respeito, achei que fosse possível, pelo menos plausível que haja raízes (em comum)."

Sam diz que seu tio, um acadêmico da Universidade de Edimburgo e geneaologista, fez sua própria pesquisa sobre o assunto. "Ele pesquisou alguns nomes e questões históricas e acho que há uma quantidade razoável de evidências de que (a história) pode ter um certo elemento de verdade."

Sua sogra lembra da reação, em Gurro, quando o noivado de Sam e Sabrina foi anunciado. "Fizeram piadas do tipo, 'sua filha vai voltar às raízes, então agora teremos uma escocesa de verdade, e não apenas uma lenda", recorda Alma.

A ida à Escócia para o casamento emocionou Alma e seu marido Adriano. "Foi como voltar às origens", diz ela. "Todos os humanos ficam felizes ao descobrir suas origens e saber que pertencem a um grupo. Me senti em casa. Adoraria ter uma confirmação de que a nossa história é verdadeira."

Adriano diz que buscou provas da história de Gurro, sem sucesso. "Fomos até a um cemitério buscar sobrenomes parecidos aos nossos. Não encontramos nada parecido, mas a emoção do dia foi boa, de qualquer forma."

E Sabrina convenceu Sam a usar o traje típico escocês para o casamento. "Pela primeira vez na minha vida", diz ele.

"Ele fez isso por mim", agrega Sabrina. "Mas também pela tradição."