Da violência doméstica no Pará à universidade nos EUA: a saga de uma jovem brasileira na mira da deportação
A decisão do presidente americano Donald Trump de revogar as autorizações de moradia e trabalho dadas por Barack Obama a mais de 750 mil crianças e adolescentes que entraram ilegalmente nos EUA trouxe à tona histórias dramáticas sobre o futuro de mexicanos e centro-americanos - principais beneficiados pelo Daca (Deferred Action for Childhood Arrivals), um programa criado em 2012 para regularizar a situação destes jovens, conhecidos como "dreamers" (ou sonhadores).
Mas o futuro é incerto não apenas para eles. Desde a revogação do decreto, em 5 de setembro, o grupo formado por 7,4 mil "dreamers" nascidos no Brasil, segundo os dados oficiais mais recentes (junho de 2017), voltou a dormir e acordar com o fantasma de oficiais de imigração batendo na porta com ordens de deportação.
A maioria mal fala português, nunca voltou ao Brasil e cresceu cercada por referências americanas - dos livros e colegas de escola, às comidas e aos programas favoritos de TV.
O Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking de países de origem mais atendidos pelo Daca. No topo estão México (622,7 mil beneficiários), El Salvador (28,5 mil) e Guatemala (20 mil).
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Os opositores do programa argumentam que ele dá anistia a imigrantes ilegais, autorizando estrangeiros irregulares a disputarem postos de trabalho que poderiam ser ocupados por americanos ou imigrantes em situação regular. Defendem também que, quem desrespeitou a lei, não deve se beneficiar de políticas lenientes. Alguns alegam ainda que esses filhos de imigrantes não são confiáveis e oferecem risco à segurança nacional.
Já quem o defende afirma que o Daca apenas evita a deportação imediata, sem garantir residência permanente ou cidadania futura. Seria, para estes, uma forma de assegurar condições minimamente decentes a pessoas que não escolheram atravessar a fronteira de forma irregular - e que comprovaram que estudam e não têm antecedentes criminais.
A iminência da deportação para um passado distante ou praticamente inexistente (muitos vieram para os EUA ainda bebês de colo) reacende traumas antigos - como os da estudante Valéria do Vale, que chegou aos Estados Unidos aos 7 anos, fugindo com a mãe e a irmã da pobreza e da violência doméstica no interior do Pará.
"Você era tão pequena. Deve ser difícil se lembrar do que aconteceu naquele dia, não?", pergunta a BBC Brasil à estudante, que na noite da travessia foi separada da família e entregue a estranhos para cruzar um rio na fronteira entre México e Estados Unidos, no fim de 2004.
"Lembro de cada segundo como se fosse hoje", responde a estudante de ciências políticas de 19 anos, filha de uma faxineira.
Depois de guardar o segredo de sua ilegalidade por 12 anos e enfrentar preconceito de onde menos esperava ("sempre ouvi historias de brasileiros que delatavam brasileiros para a imigração"), hoje, Valéria é a primeira pessoa da família a chegar à universidade, graças ao Daca.
O caminho até chegar aos EUA
"Não tem como entender algo que você nunca viveu", adverte a estudante, enquanto conta sua história.
Após seguidas agressões do ex-marido e sem perspectivas de trabalho na pequena cidade de Jacundá, a 400 km de Belém (PA), a mãe de Valéria decidiu recomeçar com as duas filhas, então com 7 e 1 ano e meio de idade, nos Estados Unidos, onde a irmã já vivia legalmente.
"Minha mãe era vítima de violência doméstica. Em uma cidade pequena como Jacundá, não tem para onde ir. Não tem para onde crescer. E não tem lei", diz a atual moradora de Boston (Massachusetts).
Após ter o pedido regular de visto recusado, a família decidiu voar para o México. "O oficial (do consulado americano) viu que meu pai não viajaria e negou nosso visto. Aí minha mãe decidiu cruzar a fronteira (do México aos EUA) . Nenhuma de nós sabia bem o que isso significava", lembra Valéria, que intercala um português com sotaque americano com termos em inglês, como "you know" (sabe?) ou "whatever" (tanto faz).
"No México, passamos uma semana dentro de uma casa com um bocado de gente. Os coiotes (agentes ilegais que transportam imigrantes em condições precárias) ensinavam a gente o que teríamos que falar depois de cruzar."
"Ensinavam o quê?", pergunta a reportagem. "Eles formavam famílias de pai, mãe e filho. Então, a gente tinha que combinar para poder falar sobre um passado que não existiu. Como éramos três mulheres, me separaram de minha mãe e minha irmã, que era um bebê, e eu fui com desconhecidos", lembra a estudante.
Ela continua: "Fiquei num deserto um dia inteiro, cruzamos o rio e eu pensei que fosse me afogar. Fui nas costas da 'esposa' e a água estava no pescoço dela. Muito traumático."
Recebida por outros coiotes já nos Estados Unidos, Valéria ficou 20 dias sem ter notícias da mãe e da irmã.
"Foi bem emocionante encontrá-las de novo. Quando se cruza a fronteira, muita coisa pode acontecer. Tem o calor, tem fome e sede, tem gente sequestrada... Ela estava muito preocupada."
A vida sem documentos
"Nos EUA, o status migratório sempre vira uma arma contra a gente mesmo", diz Valéria do Vale.
Ela conta que, até os 16 anos, quando se tornou uma "dreamer", não contou o segredo a nenhum amigo, por medo de ser descoberta ou denunciada.
"As escolas não exigem a documentação, mas lá dentro ou fora a gente não podia contar pra ninguém. Até na comunidade brasileira a gente enfrenta um estigma. A gente ficava com medo do preconceito dos próprios brasileiros, porque sempre ouvia histórias de brasileiros que delatavam para a imigração. Muitos brasileiros chegam e pegam trabalho com brasileiros e depois não recebem, ou são ameaçados."
Durante o ensino fundamental, Valéria chorou quando não pode explicar, a uma professora, porque teve de faltar a um concerto musical e acabou sendo obrigada a assistir a uma aula em pé, como castigo.
"Filho de imigrantes tem responsabilidades bem cedo. Minha mãe estava trabalhando e eu tive que cuidar da minha irmã. A professora me deixou de castigo porque, diferente dos outros alunos, eu não tinha uma carta explicando por que faltei. Mas a minha mãe não sabia falar ou escrever em inglês. E eu não podia contar que estava cuidando da minha irmã, porque naquela idade isso também era ilegal."
"Ela me deixou tão exposta na frente dos outros alunos que eu não aguentei e chorei muito."
Considerada branca no Brasil, Valéria costuma ser encaixada na categoria "latina" nos Estados Unidos.
"Minha família é branca, a gente até parece americano, mas esquece que a discriminação vai além do olho. Quando estava aprendendo, eu tinha um sotaque muito forte. As pessoas faziam piada, tratavam diferente, me colocavam em outro lugar."
O decreto - e a reação à revogação
Aos 16 anos, Valéria decidiu compartilhar o aprendizado de imigrante com outros recém-chegados nos EUA.
Funcionária de uma organização social, ela se dedica a ensinar aos novatos os caminhos para a conquista de bolsas para faculdades e ajuda financeira.
Sobre a decisão de Trump de revogar o decreto do antecessor, a estudante diz que nunca se sentiu plenamente estável.
"O Obama não acordou um dia e decidiu criar uma política de imigrantes porque estava de bom humor. Isso foi fruto de uma luta muito grande de muita gente que perdeu muitas pessoas. A gente continua perdendo", diz.
"Eu sempre soube que, quando um presidente mais conservador viesse, a gente podia perder o Daca. Até com a Hillary isso poderia ter acontecido", continua.
Agora, ela luta para mudar a percepção de quem vive nos Estados Unidos sobre os imigrantes.
"Eu quero que a conversa sobre imigração seja feita de uma maneira diferente da feita por Washington, porque ela machuca a minha mãe, que até hoje faz limpeza e cria minha irmã de 15 anos, que estuda", diz.
"Hoje eu tenho consciência dos meus direitos e da minha importância aqui, e cada vez mais pessoas precisam saber disso."
Desde que cruzou a fronteira, nas costas da família desconhecida, Valéria nunca mais voltou ao Brasil.
"Nunca fui pro Brasil", diz.
"Me sinto parte dos dois países. Tenho orgulho da minha identidade brasileira e penso que ela nunca escapou de mim porque senti na pele o preconceito. Mas me identifico como uma americana", diz. "Meu lugar agora é aqui."
O futuro dos sonhadores
No início de setembro, o procurador-geral dos EUA, Jeff Sessions, anunciou o fim do Daca, criado por Obama para regularizar temporariamente imigrantes em situação ilegal que chegaram aos Estados Unidos quando eram menores de idade.
Para se qualificarem para o Daca, candidatos com menos de 30 anos eram obrigados a enviar informações pessoais ao Departamento de Segurança Interna do país, incluindo seus endereços e números de telefone. Eles tinham de passar por uma verificação de antecedentes do FBI que garantisse a ausência de antecedentes criminais. Também tinham de estar na escola ou ser recém-formados.
Desde o dia 5 passado, o governo não aceita mais pedidos para novos beneficiados pelo Daca.
Nos próximos seis meses, nada muda para quem já foi aceito pelo programa. Esse é o tempo previsto para que o Congresso dos EUA encontre uma solução legislativa para quem recebeu uma autorização temporária para permanecer no país.
Há a possibilidade, por exemplo, de um programa com regras similares ser aprovado pelo Congresso americano e se tornar lei.
Se o programa for desmantelado, em contrapartida, os "dreamers" voltarão a ser ilegais e perderão suas licenças de trabalho, seguro de saúde e, em alguns Estados, suas carteiras de motorista, correndo o risco de serem deportados a qualquer momento.
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