"Chorava todos os dias": o lado obscuro da vida dos lutadores de sumô no Japão
De pé em meio ao frenesi dos flashes disparados em sua direção, o lutador anuncia com os olhos marejados sua aposentadoria imediata. "Desculpem-me do fundo do meu coração", ele diz após se curvar e permanecer nessa posição por um longo tempo.
Harumafuji é um grande campeão do sumô, conhecido em japonês como yokozuna. Em 25 de outubro, ele agrediu um lutador mais jovem em um bar, fraturando seu crânio, um caso que foi alvo de um inquérito policial e permaneceu nas manchetes por semanas.
O atleta, de 33 anos, chegou a pedir desculpas pelo ocorrido e decidiu se aposentar do esporte, mas foi acusado formalmente de agressão na última quinta-feira. Ele deve pagar uma multa, em vez de ser julgado em um tribunal.
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De acordo com relatos, Harumafuji teria ficado furioso quando tentou dar conselhos ao rapaz e este continuou olhando o próprio celular.
O incidente reacendeu uma discussão sobre o esporte nacional do Japão, e não é a primeira vez que algo assim acontece. Há uma década, a reputação do sumô entrou em crise quando um rapaz de 17 anos que treinava para ser lutador morreu após levar uma surra com uma garrafa e um taco de baseball.
Os agressores eram seus toshiyoris, ou anciãos, como são chamados os ex-lutadores que assumem posições de autoridade, podendo ser treinadores e gerentes de um ginásio de sumô.
Em 2010, o esporte levou um novo golpe com a descoberta do envolvimento de um atleta e de um treinador em um esquema ilegal de apostas em partidas de baseball que teria ligações com a máfia japonesa, a yakusa.
No mesmo ano, o mentor de Harumafuji, o grande campeão mongol Asashoryu, deixou o sumô após se envolver, embriagado, em uma briga do lado de fora de uma boate na capital do país, Tóquio. Depois, vieram à tona provas da combinação prévia de resultados na segunda divisão do esporte.
Seriam sinais de que o sumô está em declínio e que a disciplina que um dia o definiu está em decadência? Ou será simplesmente que, após 15 séculos, o lado obscuro do esporte está finalmente vindo à tona?
'Os mongóis estão chegando'
Uma forma de responder essas questões é olhar para a origem do esporte e para o duro regime de treinos ao qual os lutadores são submetidos.
Ainda que o sumô tenha surgido a partir de rituais de templos japoneses entre 1,5 mil e 2 mil anos atrás, o país não domina mais o circuito internacional da luta. Até a aposentadoria de Harumafuji, havia quatro grandes campeões. Três deles, inclusive o do agora aposentado Harumafuji, eram da Mongólia.
Rússia, Havaí, Samoa e países do leste europeu costumam enviar lutadores promissores para os ginásios de sumô do Japão, locais em que mestres treinam adolescentes na arte que um dia foi a grande atração das cortes imperiais da nação asiática.
O sumô não é apenas um esporte no país. É uma cerimônia que abre uma janela para o passado, calcada na tradição e na essência do que é ser japonês. Rituais rígidos estabelecem um código de conduta, e ser nascido no exterior não é desculpa para não receber um tratamento tão duro quanto o conferido aos nativos.
Todos os lutadores devem usar trajes tradicionais em público, inclusive um coque como o de samurais. Nas competições, o triunfo e o fracasso devem gerar a mesma reação impassível. Em conversas, o lutador deve ser um modelo de humildade e falar suavemente, comportando-se com hinkaku, ou dignidade. O status é tal que estranhos se curvam quando cruzam com eles na rua.
Cada um dos 45 centros de sumô no país aceita treinar apenas um estrangeiro, ou gaikokujin, de cada vez, por ordem da conservadora Associação de Sumô do Japão. E, quando conseguem chegar lá, normalmente aos 15 anos e com no máximo 23, devem comer, falar, vestir e respirar como japoneses.
Cozinhando, limpando - sem nada para o café da manhã
"(Os lutadores) São como soldados recebendo treinamento básico", explica Mark Buckton, um ex-comentarista e colunista de sumô do jornal Japan Times. "São eles que cozinham, limpam, descascam batatas... E todos aprendem japonês."
O ginásio de sumô é regido por uma hierarquia rigorosa, com um mestre - um ex-lutador - no comando. "Não é como no futebol, em que você pode se transferir de um time para outro", diz Buckton à BBC.
"Você faz parte de um ginásio para o resto da vida. A única forma de sair dele é abandonando o sumô."
Os lutadores deixam o cabelo crescer, normalmente até o meio das costas, para que o cabelereiro do ginásio possa fazer um penteado tradicional. Só lavam o cabelo a cada uma ou duas semanas, e passam nele bintsuke, um tipo de cera feita a partir de soja com um cheiro adocicado que acompanha o lutador aonde ele vá.
As refeições, geralmente compostas de um caldo quente rico em proteína com vegetais, são tão controladas quanto o regime de treinos, em que os jovens passam horas tentando empurrar seus enormes colegas em um círculo coberto por areia. "Eles comem muito. Mas o crucial é ir dormir logo após de comer", diz Buckton.
"Eles não tomam café da manhã. Todo o treinamento ocorre pela manhã. Eles almoçam quase o mesmo que uma pessoa normal, talvez um pouco mais. Mas comem isso com uma grande quantidade de arroz. Depois, vão para a cama e só acordam no meio da tarde. Comem de novo à noite e vão dormir cedo, porque se levantam às 5h, 6h da manhã para treinar."
Ginásios mais rigorosos costumam gerar lutadores melhores? "Com certeza, com certeza", afirma o especialista.
Sem salário, namoradas ou telefones
Há seis competições profissionais de sumô por ano, todas no Japão. Um lutador ganha ao forçar seu oponente a sair do círculo ou ao fazê-lo tocar o chão com alguma parte do corpo que não os pés. Conforme acumula vitórias, o lutador sobe no ranking.
Há cerca de 650 lutadores nas seis divisões, mas apenas cerca de 60 disputam a primeira. Eles não recebem salários nas quatro divisões inferiores. Um lutador talentoso pode levar de dois a três anos para começar a receber um salário.
Quando há pagamento, ele é bom: cerca de US$ 12 mil (R$ 39,6 mil) por mês na segunda divisão, um valor que pode chegar a US$ 60 mil (R$ 198 mil) na elite do esporte, incluindo contratos de patrocínio.
Os lutadores mais jovens devem usar um traje de tecido de algodão fino, o yukata, e geta, ou sandálias de madeira, mesmo no auge do inverno. Dirigir não é permitido, mas os melhores lutadores têm motoristas, algo que é tanto um símbolo de status quanto uma necessidade, já que seu tamanho dificulta a vida ao volante.
Celulares e namoradas são tecnicamente proibidos abaixo das duas primeiras divisões, ainda que haja uma tolerância crescente com isso. Mulheres não podem morar nos ginásios, e lutadores não podem se casar ou morar em outro local com sua namorada até atingir ao menos a segunda divisão.
Caso se machuque e caia para a terceira divisão, o lutador deve deixar sua mulher e filhos para trás e voltar a morar no ginásio.
O que acontece se os jovens não atenderem os padrões dos mestres ou criticarem o regime quase monástico do ginásio? "Ah, eles são terríveis", diz Buckton. "Antes do rapaz ser morto em 2007, havia espancamentos frequentes. Você via os caras com marcas nas costas e na parte de trás das pernas por não se esforçarem o suficiente."
No ano passado, segundo relatos, um lutador recebeu quase 32,4 milhões de ienes (R$ 946,3 mil) de indenização após de ter sido maltratado diariamente e ficar cego de um olho.
Depois que Takashi Saito, de 17 anos, foi espancado até a morte por ter ameaçado deixar seu ginásio, o grande campeão mongol Hakuho relatou experiências chocantes de surras que chegam a durar 45 minutos.
"Você pode olhar para mim agora e ver um semblante feliz, mas, na época, eu chorava todos os dias", disse.
"Os primeiros 20 minutos são muito dolorosos, mas, depois, fica mais fácil, porque mesmo que você esteja apanhando, começa a sentir menos dor. Claro que chorei e, quando meu ancião disse que isso era para meu próprio bem, chorei de novo."
Quebrando o silêncio
Mas por que - em um esporte que submete seus maiores talentos a anos de punição corporal - Harumafuji foi forçado a se aposentar após agredir um lutador mais jovem? "Bem, ele bateu no rapaz em um bar...", afirma Buckton.
O escritor Chris Gould, que acompanha o universo do sumô há três décadas, diz que o "pacto de silêncio" no esporte é bem poderoso.
"Há uma consistência impressionante em como o treinamento e as punições são aplicados em diferentes ginásios e ao longo do tempo. Isso significa que, quando ocorrem incidentes como o de Harumafuji, não se fala sobre o assunto para preservar o grupo", diz Gould.
No episódio mais recente, o técnico do lutador agredido foi quem fez a denúncia e defendeu mudanças no esporte. "É interessante ver um técnico ser criticado por quebrar o código de silêncio. Na maioria dos esportes, ele seria celebrado como um herói."
Com esse tipo de atitude, é possível esperar que jovens continuem se interessando pelo esporte?
Os dias em que a promessa de duas boas refeições diárias atraía jovens de famílias pobres do Japão rural para o sumô ficaram no passado, e esportes como o futebol e o baseball oferecem salários melhores sem o risco de sofrer violência.
Mas, apesar de tudo isso, a popularidade do sumô vem crescendo. Em janeiro, foi consagrado o primeiro campeão japonês em quase duas décadas, para a alegria dos fãs. A Associação de Sumô do Japão também tem feito campanhas publicitárias para voltar a tornar o esporte atraente.
Na visão de Chris Gould, a previsões sobre a ruína do sumô foram prematuras. "Ainda não é hora de entrar em pânico quanto ao futuro. Mas a associação precisa divulgar o que o sumô defende ou não, seus valores fundamentais. A não ser que isso aconteça, o número de grandes lutadores em potencial que nem chegam a entrar para o esporte só vai continuar a crescer."
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