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Família de venezuelanos surdos reconstrói a vida vendendo arepas na zona norte do Rio

A família venezuelana vende arepas com a ajuda de dois brasileiros, os irmãos Thaynara e Thiago - BBC
A família venezuelana vende arepas com a ajuda de dois brasileiros, os irmãos Thaynara e Thiago Imagem: BBC

Júlia Dias Carneiro - Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

11/05/2018 13h00

Dionel e Argelia fugiram da crise na Venezuela com os filhos, se instalaram no bairro carioca do Engenho Novo, sonham em ter uma loja e juntar dinheiro o suficiente para trazer outros parentes para o Brasil.

A cozinha da casa está um turbilhão de atividade, mas a família trabalha em silêncio. O casal está preparando arepas, um quitute típico da Venezuela, para vender, enquanto a filha caçula, Argelina, organiza as embalagens. O trio se comunica com sorrisos, olhares atentos e movimentos ágeis das mãos, na língua de sinais.

A dinâmica parece bem consolidada, mas tudo nessa rotina é novo para a família de venezuelanos - e um primeiro respiro de estabilidade após uma longa jornada para chegar até o apartamento simples que conseguiram alugar na zona norte do Rio de Janeiro.

Como os mais de 50 mil venezuelanos que atravessaram a fronteira nos últimos anos para tentar a sorte no Brasil, Dionel Gregorio Acosta Perez, de 39 anos, e Argelia del Pilar Silva Jimenez, 36, vieram fugindo da crise. Enfrentaram obstáculos a mais por serem deficientes auditivos. O casal e a filha mais nova, de 9 anos, são surdos, e os outros dois filhos, de 12 e 17, são ouvintes.

"Acho que é mais difícil para um surdo por causa do problema de comunicação", diz o pai, Dionel, em entrevista traduzida para um português recém-aprendido pelo filho mais velho, Dionel Gregorio Acosta Silva. "O português e o espanhol são um pouco parecidos. Uma pessoa ouvinte tem mais possibilidade de se comunicar com uma pessoa ouvinte aqui no Brasil que um surdo."

Dionel foi professor de língua de sinais em Caracas, onde a família morava, por dez anos. Ganhava muito pouco e começou a passar longas temporadas no Brasil em 2012 para juntar dinheiro, já decidido a se mudar e trazer a família.

Foram anos vendendo balas nas ruas e às vezes fazendo bicos em supermercados em Boa Vista, Manaus, Foz do Iguaçu ou São Paulo. Cada vez que voltava para casa, via a situação do país piorar.

"Eu não via o país em que nasci. Via tudo mudado, muito diferente. Um país sem nada nas farmácias, sem remédios, e com muitas mortes e sequestros", conta.

Golpe na travessia

No começo do ano passado, Dionel trouxe para o Rio o filho mais velho. Em novembro, Argelia veio com os filhos mais novos, Javier e Argelina. Percorreram de ônibus os 1.250km de Caracas até Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana logo antes da fronteira com o Brasil, e depois pegaram um táxi para entrar em Roraima e chegar a Pacaraima, seguindo a principal rota de entrada no país- e de lá seguindo de ônibus até Boa Vista.

Roraima concentra o maior número de venezuelanos que buscam refúgio no Brasil, mas a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, organização humanitária de assistência, estima que o Rio esteja se tornando o segundo principal destino de venezuelanos, somando os que chegaram diretamente no passado e os muitos que têm entrado no Brasil por Roraima e viajado para o Rio por conta própria.

O panorama pode mudar com o programa de interiorização que começou a ser implementado pelo governo federal em abril, com planos de transferir milhares de venezuelanos de Roraima para cidades como Manaus, Cuiabá, Campinas e Belo Horizonte até o fim do ano.

"Quando chegamos foi um alívio, mas passamos fome e tínhamos pouco dinheiro", conta Argelia.

A duras penas, Dionel conseguira juntar R$ 5 mil para comprar as passagens dos três de Boa Vista para o Rio, mas caiu num golpe de um agente de viagem. Quando a família chegou ao aeroporto, os bilhetes de papel não valiam nada. Ficaram dois dias esperando no aeroporto até a situação se resolver.

"Foi tudo uma fraude. Graças a Deus, a companhia aérea nos ajudou e nos colocou em um hotel com tudo pago", relata Argelia. "Depois disso, um amigo do meu cunhado no Brasil emprestou o seu cartão de crédito para comprarmos as passagens, e conseguimos chegar ao Rio. Aqui estamos. Foram muitas lutas."

Dionel já conseguiu um documento para residência permanente no Brasil, mas as solicitações de refúgio da família ainda estão em aberto.

De acordo com o Ministério da Justiça, o fluxo de venezuelanos representa o maior número de pedidos de refúgios feitos no Brasil, com 28.151 solicitações feitas de 2013 até janeiro deste ano - com um recorde de 17.865 pedidos no ano passado, e 5.845 só nos primeiros dois meses de 2018. Apenas 18 pedidos de refúgio foram concedidos por enquanto.

O irmão e o pai de Dionel também vieram para o Brasil e estão morando em São Paulo. Já Argelia deixou a mãe e a avó na Venezuela, e sonha em trazê-las. "Tive que deixar a minha família e isso foi muito difícil", afirma. Em compensação, os pais e filhos estavam separados havia muito tempo. "Por esse lado foi muito bom. Estamos juntos de novo."

Arepas e 'papelón con limón'

Se o dinheiro juntado vendendo balas ajudou a trazer a família, agora que estão instalados os dois resolveram investir nas arepas. A iguaria típica da Venezuela é uma espécie de pão de farinha de milho, cortado ao meio para receber recheios como frango ou carne desfiados, queijo com presunto ou "reina pepiada" - frango com abacate.

"Eles preferiram a cultura venezuelana do que só vender doces, né?", diz Dionel filho, traduzindo as respostas dos pais na sala da casa. O cômodo serve de quarto de dormir para as crianças, com uma pilha de colchões ocupando um canto e uma grande bandeira da Venezuela pendurada na parede.

A família está morando em um apartamento de fundos no Engenho Novo, na zona norte do Rio, pouco abaixo do Morro São João, favela dominada por uma facção criminosa.

Recentemente, as crianças subiram o morro para ir cortar o cabelo em um barbeiro indicado pela vizinha e depararam com traficantes armados.

"Aqui é um pouco perigoso, mas tem mais segurança que na Venezuela", considera Dionel. Ele teme, entretanto, confrontos entre a polícia e bandidos, e gostaria de se mudar para um local mais seguro quando tiver recursos para isso.

Além dos salgados, eles vendem garrafinhas de "papelón con limón", um suco escuro e bem doce feito com rapadura e limão; e bolos em pote, nos sabores de chocolate, torta de limão e "três leites" (sabor popular na Venezuela e outros países da América do Sul, feito com pão de ló, leite condensado, creme de leite e leite fervido).

Um cartaz colado à caixa térmica que usam para vender nas ruas anuncia os sabores disponíveis, todos a R$ 5, e o nome da marca que adotaram: RioVen, unindo Rio e Venezuela. Também fizeram cartões de visita para receber encomendas e oferecer arepas e outros salgados para festas.

Perdidos na tradução

Os cartazes são importantes para facilitar a comunicação, sobretudo quando as crianças estão na escola e Argelia sai para vender as arepas na rua sozinha.

"No começo a minha mãe não conseguia vender", diz o filho mais velho, contando que as pessoas reagiam com um olhar de "não estou entendendo nada". Até que o jovem Dionel começou a namorar uma colega de turma na escola, Thaynara Cristina da Silva Genoínio, de 17 anos. Ela começou a ajudar sua mãe, saindo para vender com ela todos os sábados.

"A gente esta aí nessa parceria. Eu pretendo trabalhar com eles todos os dias", anima-se Thaynara, que tem acompanhado de perto as batalhas e as pequenas vitórias da família. Quando Argelia e os pequenos Javier e Argelina desembarcaram no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, em novembro, a jovem acompanhou o namorado para recebê-los.

"Foi muito emocionante quando eles chegaram. Quando ele viu a mãe, não parava de abraçar. A família ficou horas e horas se abraçando".

As três crianças já estão matriculados na rede pública, e a caçula Argelina conta com um intérprete de libras em sala de aula, numa escola municipal.

Mãe e filha estão tendo que aprender a se comunicar em libras, a língua brasileira de sinais. O idioma de sinais é diferente de um país para o outro. Dionel já aprendeu - diz ter tido sorte por conhecer algumas pessoas surdas ao chegar em Roraima e ser levado a uma associação onde obteve ajuda e começou a aprender a língua.

'É difícil, mas é um recomeço'

A BBC Brasil acompanhou uma sessão de vendas durante o feriado, quando toda a família se juntou à empreitada. Argelia e o filho do meio, Javier, saíram vestidos com camisas da seleção venezuelana.

O percurso de vendas é pelas ruas perto da casa. Na falta de permissão para ter um ponto fixo de vendas, a família estaciona em pontos sombreados, como um posto de gasolina onde passaram cerca de 15 minutos até serem avisados de que não poderiam ficar ali - não sem antes vender para pelo menos dez motoristas que abasteciam e alguns funcionários do posto.

Enquanto Thaynara e as crianças abordavam os carros esperando na fila, os pais cuidavam de distribuir quentinhas com as arepas e o troco. Cada venda era comemorada como uma pequena vitória pelas crianças.

O casal diz que está juntando dinheiro pouco a pouco e sonha em abrir uma loja de arepas, além de poder trazer a avó e a bisavó das crianças para o Brasil. Enquanto isso, eles ajudam enviando dinheiro para elas na Venezuela.

"Eles acham que é melhor ficar aqui, que não é bom voltar", diz Dionel filho, traduzindo para os pais. "Talvez quando já não esteja o mesmo presidente (Nicolás Maduro) nem o mesmo governo, poderíamos ir para lá de novo. Ou talvez não. Já estamos um pouco mais acostumados aqui no Brasil."

"É difícil estar aqui, é um recomeço", diz o casal. "Mas o objetivo é juntar dinheiro, ter uma loja, trazer um pouco da cultura da Venezuela. E dar uma vida melhor para todos os familiares que estão passando dificuldades lá. Para que todos possam ter uma vida melhor, pouco a pouco."

* Imagens e edição: Pedro Prado.