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Fiz um erro de julgamento sobre Moro, mas não sobre Lula, diz José Padilha, diretor de 'O Mecanismo'

Letícia Mori e Lígia Mesquita - Da BBC News Brasil em São Paulo e em Londres

11/06/2019 10h38

Cineasta diz que 'incluiria conversa de Moro e Dallagnol' em série inspirada na Lava Jato, critica 'atitude estúpida' de juiz da operação e diz que 'chegada de políticos ligados à PM e as milícias do Rio à Presidência' dava um bom filme ou série.

À luz da divulgação das polêmicas mensagens trocadas entre acusadores e magistrados da Lava Jato, o cineasta José Padilha disse que sua visão sobre a operação mudou e que teria retratado o juiz Sergio Moro de forma diferente em sua série O Mecanismo, da Netflix, inspirada nas investigações, se tivesse as informações que tem hoje.

No entanto, embora afirme que "cometeu um erro de julgamento" sobre Moro (a quem já chamou de "samurai ronin", em alusão elogiosa, segundo suas próprias palavras, à "independência política que balizava sua conduta") e a Lava Jato, o cineasta diz que sua visão sobre o ex-presidente Lula e outros políticos investigados pela operação não mudou. "Considero o ex-presidente Lula um picareta. Qualquer pessoa razoável não consegue fingir que Lula é honesto", disse, em entrevista à BBC News Brasil.

Em diálogos atribuídos ao hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e a Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, publicados pelo site The Intercept Brasil, o então juiz federal teria dado instruções à Procuradoria, sugerido mudanças nas fases da investigação e antecipado decisões - coisas que, para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, contrariam o Código de Processo Penal, a Lei Orgânica da Magistratura e mesmo a Constituição Federal.

Após a publicação das supostas mensagens, Moro se defendeu dizendo que "não há nada demais" nas conversas vazadas.

Padilha disse ainda não ter dúvidas de que o juiz "cometeu um monte de erros" e que vê a operação Lava Jato como "um embate entre um juiz e alguns procuradores justiceiros e uma quadrilha de políticos corruptos". Diz também que a atitude de Moro de "ajudar a acusação" é "claramente estúpida" porque "juízes devem ser neutros" e porque "as evidências eram muito claras".

Sua série O Mecanismo, que tem um personagem, o juiz Paulo Rigo (Otto Jr), inspirado em Moro, teve a segunda temporada lançada pela Netflix neste ano. A terceira temporada ainda não foi confirmada.

Diretor de filmes de sucesso de crítica e público com temas políticos, como Tropa de Elite e Ônibus 174, Padilha conversou com a BBC News Brasil por e-mail. Leia a entrevista abaixo:

BBC News Brasil - O site The Intercept Brasil publicou uma reportagem dizendo que Sérgio Moro, quando era juiz responsável pelos processos da operação Lava Jato, teria trocado mensagens com os procuradores, dando conselhos e comentando o processo, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Como o senhor recebeu isso? Ficou surpreso?

José Padilha - Confesso que não me surpreendeu muito. No momento em que Moro aceitou trabalhar para a turma de [Jair]Bolsonaro, políticos claramente despreparados e envolvidos com a esgotosfera da polícia carioca, percebi que tinha feito um erro de julgamento a seu respeito. Note, entretanto, que não fiz um erro de julgamento a respeito de Lula, de [Michel] Temer, de [Sergio] Cabral e de [Eduardo] Cunha. Os fatos apurados pela Lava Jato demonstram a desonestidade destes políticos corruptos. De modo que a Lava Jato foi um embate entre um juiz e alguns procuradores justiceiros e uma quadrilha de políticos corruptos.

BBC News Brasil - O senhor percebeu algo que destoava da lei ou da ética na relação entre o juiz federal Sérgio Moro e os procuradores do Ministério Público Federal?

Padilha - Sim, algumas decisões da equipe da Lava Jato foram questionáveis antes mesmo do vazamento destas mensagens. Por exemplo, a famosa retirada do sigilo sobre a ligação de Dilma para Lula [em março de 2016 foi divulgado um grampo de um telefonema entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula] . Embora a ligação e a tentativa de obstrução de Justiça tenham sido reais, a retirada do sigilo foi um equívoco. Assim como foi a retirada do sigilo da delação de Palocci antes das eleições.

BBC News Brasil - Como esse vazamento pode impactar seu trabalho no futuro?

Padilha - O Mecanismo mostra, não via mensagens de celular, mas via reuniões entre os membros da Lava Jato, que Moro, a PF [Polícia Federal] e os procuradores tinham uma relação muito íntima e que debatiam, sim, a melhor maneira de encaminhar as acusações contra os réus. Isto está explícito na primeira e na segunda temporadas.

A diferença é que nas nossas cenas, a iniciativa nunca era de Moro. Era sempre dos procuradores. Agora, parece que Moro tomou a iniciativa de "ajudar" a acusação... Uma atitude antiética e claramente estúpida. Primeiro, porque juízes precisam ser neutros. Segundo, porque as evidências eram muito claras. Ao se arvorar para além das suas funções, Moro pode terminar "soltando" políticos que, claramente, depenaram o país em conluio com grandes bancos e construtoras.

BBC News Brasil - Ao criar uma versão ficcional de um processo que está em andamento sempre há a possibilidade de mudanças e novos acontecimentos. Espera ainda muitas reviravoltas na Lava Jato? Se sente na obrigação de apresentar novos fatos aos espectadores?

Padilha - Sim, a Lava Jato terá muitas reviravoltas. Sobretudo no que tange ao Judiciário. Olho para o STF [Supremo Tribunal Federal] com grande suspeição. Gilmar Mendes questionou as mensagens de Moro. Será que ele nos franqueia acesso às suas mensagens? Ao teor de suas conversas com Aécio [Neves] e demais "conhecidos" que andou soltando?

BBC News Brasil - Você já fez críticas à atuação de Moro como ministro de Bolsonaro, mas não à atuação dele como juiz na Lava Jato. E já disse que "Moro foi retratado de forma fiel ao que Moro fez na época em que foi retratado". Essa reportagem do Intercept muda a forma como você enxerga a atuação dele na operação?

Padilha - Com certeza. Contra fatos não existem argumentos.

BBC News Brasil - Se você tivesse as informações que tem hoje sobre o ministro, teria retratado ele da mesma forma?

Padilha - Tivemos o cuidado de não centrar a série na figura de Moro. O herói do Mecanismo é Marco Ruffo [policial interpretado por Selton Mello]... Conte as cenas de Moro ou o tempo de Moro na tela... Não é muito grande. E o Moro que retratamos está longe de ser perfeito. Porém, não resta dúvida: Moro cometeu um monte de erros que mudariam a forma com que mostramos ele, sim. Aliás, não apenas a nossa forma de retratá-lo. Imagino que a forma de toda a mídia.

BBC News Brasil - Por exemplo, sabendo da conversa entre Moro e Dallagnol sobre a divulgação da interceptação ilegal do telefonema entre Lula e Dilma, o senhor mudaria o jeito com que esse episódio foi retratado na série?

Padilha - Mudaria. Incluiria a conversa entre Dallagnol e Moro.

BBC News Brasil - Sua opinião sobre a operação em si continua a mesma?

Padilha - Não. A minha opinião sobre a Lava Jato mudou, embora a minha opinião sobre a corrupção capitaneada por Lula, Palocci, Cabral, Temer, Cunha... continue a mesma. Na verdade, a Lava Jato não chegou ao fundo do poço da corrupção do petrolão. O que PT e PMDB fizeram é ainda pior do que o que já apareceu. E a forma como a banda toca no Judiciário, STF incluso, ainda não foi totalmente esclarecida para a população.

BBC News Brasil - Nas mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil, uma das procuradoras teria falado que vai rezar para o PT não voltar, e Dallagnol teria respondido: "reza sim". Na sua avaliação, houve perseguição política ao PT por parte da Lava Jato?

Padilha - Rezar para o PT não voltar não prova perseguição política. Mas Moro aceitar ser ministro de Bolsonaro abre margem para essa interpretação, sim. Não esqueça: em uma disputa jurídica, os dois lados podem estar errados e ser desonestos ao mesmo tempo.

O fato de Moro ter agido de forma equivocada não apaga, por exemplo, o fato de que Lula deu dezenas de palestras para as empreiteiras envolvidas na Lava Jato, recebeu dezenas de milhões de reais por estas palestras e nunca qualquer pessoa postou um vídeo ou uma foto destas palestras no Facebook ou Instagram. Ou seja: Moro pode ter conduzido o processo que condenou Lula de forma equivocada. Mas isso não significa que Lula não roubou ou que não era, de fato, culpado. Há a possibilidade destes dois personagens se merecerem...

BBC News Brasil - O senhor considera o ex-presidente Lula um injustiçado?

Padilha - Considero o ex-presidente Lula um picareta. Qualquer pessoa razoável não consegue fingir que Lula é honesto.

BBC News Brasil - Lidando com assuntos que despertam paixões no Brasil, você já recebeu elogios e críticas dos dois lados do espectro político. Como foi a reação do público depois que você fez as primeiras críticas à atuação do Moro?

Padilha - Na verdade, sequer acredito em ciências sociais, de modo que não consigo acreditar em fórmulas pré-determinadas de governo que supostamente, uma vez adotadas, resolveram os problemas de qualquer país... Ou seja: eu não tenho posição ideológica a defender. Ter uma posição ideológica a defender a todo custo é ser irracional.

Isso explica, em parte, porque apesar de estar claro que PT e PMDB roubaram bilhões e bilhões, alguns formadores de opinião não conseguem admitir que Lula roubou. Porque eu não tenho ideologia a defender, eu também não tenho problema algum em aceitar fatos que contrariam as minhas crenças.

A racionalidade demanda mudanças de opinião, pura e simplesmente porque todos nós temos intelectos falíveis. Albert Einstein mudou de opinião sobre a constante arbitrária que acrescentou à relatividade geral... Quem sou eu para saber tudo? Se acho que errei, reconheço, se acho que não errei, explico por quê.

BBC News Brasil - As pessoas esperavam que você fosse um defensor incondicional dele?

Padilha - Só quem não me conhece direito.

BBC News Brasil - O ex-deputado Jean Wyllys disse que há "desonestidade intelectual" no que chamou de "mudança de discurso" sua. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

Padilha - Que o deputado Jean Wyllys não sabe o que significa ser intelectualmente honesto. Ser honesto intelectualmente é precisamente ser capaz de mudar de opinião quando os fatos contrariam as suas teses. Se os fatos (por exemplo as falsas palestras de Lula) demonstram que Lula roubou, então Jean Wyllys seria honesto intelectualmente se tivesse a coragem de admitir que apesar de ter defendido Lula, obviamente Lula não deu as palestras pelas quais recebeu.

Ou seja: as pessoas honestas intelectualmente mudam de discurso porque sabem, como disse [o filósofo grego] Sócrates, que nada sabem. Já os desonestos intelectualmente, estes estão sempre certos e nunca mudam de opinião ou de discurso.

BBC News Brasil - Que outros acontecimentos recentes no Brasil dariam bons filmes (ou séries)?

Padilha - A chegada de políticos ligados à PM [Polícia Militar] e às milícias do Rio à Presidência da República....

BBC News Brasil - Você aceitaria novamente o desafio de retratar um processo que ainda não teve uma conclusão?

Padilha - Todo documentário filmado ao vivo e a cores retrata processos que ainda não tiveram uma conclusão... Toda a mídia, aliás, retrata diariamente processos que ainda não chegaram a termo. Não aceitar esse desafio e não aceitar a possibilidade do erro, é o mesmo que se trancar em casa e não participar da vida social e política do seu país. Ou pior: é se tornar desonesto intelectualmente, como boa parte da esquerda se tornou por conta da defesa do PT.

BBC News Brasil - O que achou da repercussão da segunda temporada de O Mecanismo e o que podemos esperar da terceira?

Padilha - A repercussão foi muito boa, crítica e público. Os números também foram bons mesmo com a série tendo sido lançada sem marketing.

BBC News Brasil - Você já disse que a atuação do presidente Jair Bolsonaro está mais ligada a um outro trabalho seu, o Tropa de Elite 2. Podemos esperar um Tropa de Elite 3 no futuro?

Padilha - Não. Mas pode esperar algo sobre Bolsonaro sim.

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