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Crise na Venezuela: o drama dos milhares de bebês sem nacionalidade nascidos na Colômbia

Estima-se que 20 mil recém-nascidos não tenham nacionalidade porque são filhos de venezuelanos nascidos na Colômbia - Getty Images/BBC
Estima-se que 20 mil recém-nascidos não tenham nacionalidade porque são filhos de venezuelanos nascidos na Colômbia Imagem: Getty Images/BBC

Boris Miranda

Correspondente da BBC News Mundo na Colômbia

16/06/2019 10h42

Diego acompanha sua mãe todos os dias. Julia, mãe do bebê, se dedica a vender sacos para lixo e material de limpeza em uma das melhores áreas de Bogotá. Ela chegou à Colômbia há dois anos, Diego nasceu nove meses atrás.

"Eu não sei que procedimento devo fazer nem onde devo registrá-lo", disse a mulher à BBC News Mundo. A criança é um dos mais de 20 mil casos de bebês nascidos de imigrantes venezuelanos na Colômbia que não têm nacionalidade.

As crianças apátridas, ou seja, sem nacionalidade, são um tema de "alta preocupação" para organizações internacionais como o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que defende a adoção de medidas urgentes nestes tipos de situações.

Os bebês

De acordo com a diretoria de Migração da Colômbia, 1.260.594 cidadãos da Venezuela se encontram neste país. Produto desse alto fluxo migratório, nunca antes visto, é que existem mais de 20 mil recém-nascidos em território colombiano que são filhos de imigrantes venezuelanos.

Mas, pela legislação, não basta nascer na Colômbia para obter a nacionalidade.

O êxodo em massa dos venezuelanos é atribuído à crise econômica e à escassez que existe no país. O caso de Diego é um deles, filho de um casal que faz parte da enorme diáspora venezuelana.

Eles vivem em um bairro no sul de Bogotá, longe dos restaurantes exclusivos e dos grandes centros comerciais da capital colombiana. "Se nada mudar, espero que eles me deixem estudar aqui, que me deixem crescer (aqui)", diz Julia.

"Parem de parir"

A questão gerou uma controvérsia especial nesta semana na Colômbia, como resultado da coluna "Parem de parir", que é assinada pela jornalista e ex-apresentadora da CNN em espanhol, Claudia Palacios, e publicada no jornal "El Tiempo" --o mais importante do país-- que provocou uma tempestade nas redes sociais e foi descrito como "xenófobo", "eugênico" e até "fascista".

No artigo, Palacios afirma que o governo colombiano deve fazer do controle de natalidade dos imigrantes venezuelanos a prioridade de sua estratégia de migração. E acrescenta:

"Mas, queridos venezuelanos, aqui não é como no seu país, e é bom que não seja, porque a ponta de subsídios o socialismo do século 21 fez o país mais rico da região muito pobre, então a melhor forma de serem bem-recebidos é vocês estarem cientes de que, apesar dos problemas internos, a Colômbia conseguiu recebê-los como nenhum outro país, mas se vocês continuarem se reproduzindo como estão fazendo, seria ainda mais difícil vê-los como oportunidade para o desenvolvimento em vez de vê-los como problema."

Muitos leitores lembraram à jornalista os milhões de colombianos que já buscaram refúgio na Venezuela, onde muitos também tiveram filhos.

A jornalista (que também contou com algumas vozes de apoio) se defendeu no Twitter escrevendo que "a recepção que a Venezuela deu aos colombianos é reconhecida, mas que esse não é o ponto da questão. O ponto é que a migração em massa em condições tão vulneráveis "não é o contexto ideal para ter filhos. Há responsabilidades individuais e estaduais, é disso que a minha coluna trata".

Maria está confiante de que seu filho terá acesso à saúde - BBC - BBC
Maria está confiante de que seu filho terá acesso à saúde
Imagem: BBC

Desamparo

Tanto o Acnur quanto outras organizações não-governamentais alertam que os bebês apátridas são uma questão pendente na Colômbia.

"Recomendamos que, qualquer que seja o caminho que as autoridades colombianas decidam seguir, seja uma lei ou um decreto, o mecanismo permita resolver esses casos", diz Juan Ignacio Mondelli, responsável pela proteção do escritório regional do Acnur.

O organismo internacional pontua que os filhos de imigrantes podem passar a vida inteira sem direito a acessar vários serviços básicos, como saúde ou educação. "Eles vivem nas sombras e, na prática, são excluídos", afirma o funcionário do organismo internacional.

As Nações Unidas não são a única entidade a demonstrar preocupação sobre o caso. A Defensoria do Povo da Colômbia também pede às autoridades deste país para abordar a questão.

"A complexidade do fenômeno e as problemáticas daí decorrentes na garantia dos direitos das pessoas com maior vulnerabilidade, como crianças e migrantes, tais como o risco de apatridia, a desnutrição, a falta de acesso a escolas e serviços de saúde, entre outros, dão conta da necessidade de que as autoridades nacionais atuem rapidamente para evitar prejuízos irremediáveis", disse a entidade à BBC News Mundo.

A Defensoria acrescenta que "muitos menores de idade nascidos em nosso país não tem nacionalidade, o que resulta na impossibilidade de acesso e garantia de seus seus direitos fundamentais, aumentando assim a vulnerabilidade dessa população".

Jorge

Bogotá e o departamento fronteiriço do Norte de Santander são os dois destinos mais comuns da diáspora venezuelana. Mais de 270 mil imigrantes se estabeleceram na capital colombiana, enquanto 176.695 pessoas do país vizinho estão localizadas na área de fronteira, principalmente na cidade de Cúcuta.

Maria, a mãe de Jorge, é uma delas. A venezuelana cruzou a fronteira porque sua gravidez era perigosa e após o parto decidiu ficar na Colômbia. O bebê nasceu em fevereiro deste ano e teve que receber cuidados especiais por causa do peso baixo e do estado de fragilidade em que se encontrava.

"Eu não sei se será colombiano ou venezuelano, mas quero que esteja saudável", disse a mãe, na ala pediátrica do hospital público de Cúcuta.

María relata que o marido tenta deixar a Venezuela para se juntar a eles, mas ainda precisa juntar mais dinheiro. Nesse meio tempo, ela fica com uma prima que mora em Cúcuta há alguns anos. Ela espera começar a trabalhar em uma padaria.

Por que não são colombianos?

Ao contrário de outros países da América Latina ou dos Estados Unidos, o nascimento em território não confere nacionalidade na Colômbia.

Entre 2017 e 2019, mais de 3.300 recém-nascidos filhos de imigrantes venezuelanos foram registrados neste país, mas não adquiriram a nacionalidade colombiana.

Carlos Negret, Defensor Público, salienta que é por isso que uma lei que permita que "as crianças obtenham a nacionalidade por adoção" é necessária.

"Neste momento essas crianças estão em um limbo jurídico. Nós não vemos, da Ouvidoria, que a situação na Venezuela vai melhorar e é por isso que as crianças vão continuar nessa situação", disse a autoridade.

A entidade colombiana apresentou um projeto de lei perante o Congresso em abril para que todos os bebês de imigrantes venezuelanos nascidos na Colômbia possam obter a nacionalidade deste país.

"O número de crianças nesta situação é extremamente grave. Nós temos que cortar (esse número), acabar com a má administração dessas crianças", disse Negret.

O defensor público salientou que esta situação deve "superar qualquer tipo de nuance política".

O futuro

Julia e Maria concordam que gostariam de voltar para a Venezuela, mas não sabem quando isso será possível. Enquanto isso, esperam encontrar apoio na Colômbia para que seus filhos tenham acesso à saúde e educação.

Elas receberam atenção no sistema público hospitalar, mas sabem que, como os filhos não são colombianos, eles não poderão ter atendimento médico caso tenham algum problema.

No início de junho, o presidente Ivan Duque se reuniu com emissários do ACNUR para tratar do crescente problema dos bebês apátridas.

O governo sinalizou que adotaria medidas para evitar que as crianças sejam deixadas em situação de desamparo, mas ainda não anunciou quais serão.

A atriz americana Angelina Jolie, embaixadora do ACNUR, também demonstrou preocupação com a questão em sua recente visita à Colômbia.

"O presidente e eu conversamos sobre o risco de que mais de 20 mil crianças venezuelanas se tornem apátridas e estamos comprometidos em apoiá-las", disse Jolie.

Enquanto o Congresso e o governo debatem possíveis soluções para este conflito inesperado, Julia e María cuidam de Diego e Jorge. Julia segue em uma rua de Bogotá rodeada de restaurantes, oferecendo seus produtos de limpeza, inclusive quando chove. Maria permanece em Cúcuta.

Os filhos, nascidos em meio ao seu êxodo, são os motivos que elas têm para não desistir.