Lei de Anistia no Brasil não pode impedir Justiça, cobrou ONU
Um mecanismo da ONU cobrou do Brasil garantias de que a Lei de Anistia não seja usada para impedir que crimes sejam investigados e seus autores responsabilizados diante da Justiça.
O alerta faz parte de um documento enviado ainda em fevereiro de 2024 pelo Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários da Organização das Nações Unidas (ONU). O conteúdo, agora, está sendo revelado pelo UOL com exclusividade.
Para fontes dentro do próprio governo, o posicionamento internacional revela um crescente consenso sobre a incompatibilidade da Lei de Anistia, diante das informações sobre crimes e de um esforço para dar justiça às vítimas.
No último final de semana, o tema da responsabilização pelos crimes da ditadura foi reaberto depois da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, que estabeleceu que a Lei de Anistia de 1979 não pode proteger os responsáveis pelos desaparecimentos forçados da ditadura militar.
Seu argumento é de que a ocultação de cadáver se trata de um crime permanente, cujos efeitos não cessam até a localização do corpo. Portanto, a lei de Anistia não poderia proteger os autores desses crimes.
No despacho, o ministro ainda cita o filme "Ainda Estou Aqui" - derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice). Segundo ele, a obra tem "comovido milhões de brasileiros e estrangeiros". "A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho", disse.
A decisão de Dino será alvo de um debate entre os demais ministros do Supremo, abrindo uma brecha sem precedentes no caso da responsabilização para os crimes cometidos na ditadura militar (1964-1985).
No documento da ONU, porém, fica explícito o posicionamento do mecanismo internacional contrário à Lei de Anistia.
O mecanismo solicita do governo brasileiros "informações sobre os esforços feitos para assegurar os direitos à memória, à verdade, à justiça, à reparação e às garantias de não-recorrência para os desaparecimentos forçados iniciados durante a ditadura".
O grupo de especialista cobra o Brasil em alguns aspectos em específico. A ONU quer informações sobre:
- os esforços realizados para garantir que a lei de anistia de 1979 não seja aplicada pelo judiciário para impedir o acesso à Justiça e a responsabilização;
- a implementação dos direitos à memória, verdade, justiça e reparação a todas as vítimas de desaparecimentos forçados durante a ditadura, independentemente de sua afiliação política.
- a reforma dos currículos escolares para garantir que a narrativa dos eventos seja inclusiva e reconheça as contribuições e as lutas de grupos historicamente desfavorecidos na luta contra a ditadura.
- Assegurar a reintegração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e garantir que ele cumpra plenamente seu mandato, bem como as medidas tomadas para garantir o direito de participação das vítimas no processo.
- Implementar as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, a saber, o estabelecimento de uma força-tarefa permanente com o objetivo de abordar as violações de direitos humanos, incluindo desaparecimentos forçados, cometidas durante a ditadura.
No documento, o órgão da ONU destaca que, "durante a ditadura, execuções sumárias seguidas de ocultação dos cadáveres se tornaram uma prática sistemática do Estado para combater a oposição politicamente organizada".
A preocupação da entidade, porém, é que esses crimes permaneçam impunes.
"Um exemplo emblemático dessa prática foi o caso do policial Cláudio Guerra, que foi condenado em junho de 2023 pela ocultação de 12 corpos de opositores políticos desaparecidos à força durante a ditadura militar", disse. "No veredicto, o judiciário brasileiro - 2a Vara Federal de Campos de Goytacazes, Seção Judiciária do Rio de Janeiro - reconheceu a natureza imprescritível dos crimes contra a humanidade e a inaplicabilidade da Lei de Anistia 6683/1979", explicou.
"No entanto, essa decisão é bastante excepcional, pois, de acordo com as informações recebidas, a maioria esmagadora do judiciário continua a aplicar a Lei de Anistia de 1979 e, portanto, a impunidade continua a prevalecer por graves violações de direitos humanos, incluindo desaparecimentos forçados, cometidos durante a ditadura militar", lamentou o grupo.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receber"Além disso, alega-se que os processos judiciais que buscam o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei de Anistia de 1979 (Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental, números 153 e 320) ainda estão pendentes no Supremo Tribunal Federal para discussão e resolução", insiste.
Num resposta vaga, o estado brasileiro evitou se comprometer.
"Com relação aos esforços para garantir os direitos à memória, à verdade, à justiça, à reparação e às garantias de não-recorrência dos desaparecimentos forçados ocorridos entre 1964 e 1985, deve-se observar que uma proposta de decreto para recriar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) está sendo processada atualmente", afirmou.
A Comissão, de fato, seria recriada pelo governo em meados do ano.
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